terça-feira, 16 de novembro de 2010

Tas faz uso louvável do Twitter e ainda ganha dinheiro com isso

Marcelo Tas, no fim do mês de outubro, atingiu a marca de 1 milhão de seguidores na ferramenta


O twitter foi lançado em 2006 por Jack Dorsey, um empresário norte-americano desenvolvedor de softwares de St. Louis, Missouri. É, para quem não sabe, uma ferramenta micromensageira, na qual os usuários são convidados a responder "o que está acontecendo", em até 140 caracteres. As atualizações são exibidas no perfil de um usuário em tempo real e também enviadas a outros usuários seguidores que tenham assinado para recebê-las. O serviço é gratuito na versão web; já o recurso de atualizações via SMS, entretanto, tem cobrança pela operadora telefônica.

Outras apropriações da ferramenta, criado inicialmente com o objetivo de ser mais uma rede de interação social, surgiram com o tempo. Uma das primeiras foi para a conversação, com o uso do "@" como direcionador - @marcelotas direciona a mensagem ao perfil criado pelo jornalista Marcelo Tas. Em seguida, o Twitter também passou a ser utilizado para compartilhamento e repasse de informações, o que atualmente tem maior representação do que as atualizações pessoais.

Em pesquisa realizada por Raquel Recuero (jornalista, professora e pesquisadora do PPGL e do curso de Comunicação Social da UCPel) com usuários do Brasil - existem mais de 50 milhões de brasileiros no site -, 62% dos tweets coletados eram informativos ou continham algum tipo de informação, geralmente acompanhados por um link. É curioso notar que a pergunta-título original do Twitter não era “O que está acontecendo?”, mas sim “O que você está fazendo?”. A simples alteração reforça a constatação de que se trata de um ambiente propício para a disseminação de notícias e informações relevantes para os diversos grupos sociais ou “comunidades da web”.

Marcelo Tas, âncora do programa humorístico CQC, da TV Bandeirantes, é hoje em dia um dos campeões em seguidores na ferramenta. Depois que passou a utilizar o serviço de micromensageiro para fins jornalísticos (muito mais de modo opinativo e para repasse de informações), ganhou notoriedade e conseguiu um acordo publicitário com o Grupo Telefônica, maior conglomerado empresarial privado em atuação no Brasil, que estampou seu logotipo no plano de fundo de sua conta. A ação inédita chamou a atenção de influentes veículos de mídia, nacionais e estrangeiros, tais como O Globo, CNN, Wall Street Journal e New York Times, que noticiaram o inédito acordo.

Uma das grandes descobertas das pesquisas de Recuero é que existe uma competição no Twitter, mas não pelo número de seguidores, como se vinha alardeando, e sim pela atenção destes. O estudo mediu a quantidade de RTs (retweets) que os usuários davam (2,5 milhões de usuários era a amostra) e descobriu que a grande maioria dos usuários é passiva, ou seja, não se engaja ativamente na propagação de informações. Os autores, portanto, mostraram que há um imenso percentual de pessoas que apenas "consome" mídia. Esse perfil ou padrão de comportamento explica as investidas de empreendedores de grupos de telecomunicação, que passaram a firmar acordos – no caso com o jornalista Marcelo Tas – com comunicadores de expressão que emitem sinais de conteúdo midiático para seus seguidores, criando-se então a chamada central de jornalismo, aliada à divulgação da marca patrocinadora.

O sucesso consolidou-se recentemente. Durante todo o dia 22 de outubro, Tas provocou seus seguidores com a pergunta 'O que um milhão de corpos serelepes e mentes inquietas são capazes de fazer juntos?' e distribuiu livros para quem tuitasse respostas criativas com a hashtag #tas1milhao.

E assim, o jornalista tornou-se uma referência de informação e opinião, enquanto é invejado por políticos e ídolos nacionais, como Xuxa e o presidente Lula, que, somados, não atingem a marca de seguidores do carequinha da TV Bandeirantes.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Assunto de polícia

André Vicente/ Folhapress



O portão do CT (centro de treinamento) do São Paulo, na Barra Funda, apareceu danificado depois de mais uma amarga derrota do clube tricolor para o Corinthians, por 2 a 0, ontem (domingo, 7), no estádio do Morumbi.

A segurança do CT informou a policias militares da 1ª Companhia do 4º Batalhão - Lapa- , que às 19h30, de ontem, um homem em um Fiat Uno cinza derrubou um dos portões de acesso dando marcha à ré no veículo e, depois, quebrou o monitor de vídeo das câmeras de segurança -uma tela de 42 polegadas.

O boletim de ocorrência lavrado pela delegada Cláudia Patrícia Dalvia, do 7º Distrito Policial (Lapa), informa que um representante da empresa compareceu à delegacia informando que as câmeras do clube registraram toda a ação do vândalo. Porém, de acordo com o titular da delegacia, doutor Manoel Adamuz Neto, as imagens não chegarem ao conhecimento dos policiais civis - nem à imprensa, por conseguinte - porque o representante não quis fazer representação formal. Ou seja: não pediu para que fosse instaurado um Inquérito Policial.

"Ah, que isso? Elas estão descontroladas".
Diante dos fatos, imagino que o sujeito, uniformizado com as cores do clube dos pés à cabeça, acabou sendo preservado. Pois divulgar esse barraco à imprensa mancharia demais a imagem do time.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Boa notícia hoje para os garimpeiros da música popular brasileira

Reproduzo abaixo reportagem que saiu hoje na Ilustrada, da Folha.
Uma ótima notícia para os amantes da música popular do Brasil.

Rádio on-line reúne raridades brasileiras

Instituto Moreira Salles disponibiliza biblioteca musical com mais de 100 mil obras em programas a partir de amanhã
Documentários e programetes vão ajudar o ouvinte a conhecer o arquivo; na estreia, João Bosco fala sobre acervo

MARCELO BORTOLOTIDO, RIO: O primeiro disco lançado no Brasil pesava quase meio quilo. Produzido no Rio de Janeiro em 1902, feito de cera de carnaúba e raspa de casco de animais, suas cópias foram distribuídas de navio para outros Estados do país.Tudo isso para tocar uma única música, "Isto É Bom", do hoje obscuro Xisto Bahia -lundu recentemente gravado pelo sambista Monarco.

Um dos poucos exemplares desse fonograma histórico está guardado no acervo do Instituto Moreira Salles, no Rio. Além dele, o arquivo tem outras 100 mil canções, a maioria raridades em discos de 78 rotações da primeira metade do século passado.

Essa é uma das preciosidades que estarão na rádio on-line (no site www.ims.com.br) a ser lançada amanhã pelo instituto.É fácil para um conjunto assim, tão precioso quanto vasto, causar frustração ao leigo, sem experiência em navegar nas pilhas de discos e filtrar delas o que interessa.Daí a pertinência da rádio, que oferecerá raridades em programetes. Um deles trará sempre um compositor da MPB falando de sua formação musical por meio de canções do acervo.

O primeiro será João Bosco.SURPRESASA biblioteca musical do instituto começou a ser montada em 2000, com a aquisição do arquivo particular de Pixinguinha.Foi engrossada com as coleções do pesquisador Humberto Franceschi, formada ao longo de 50 anos, e de José Ramos Tinhorão, com mais de 6.000 discos.O passeio por esse conjunto revela surpresas. O pintor Di Cavalcanti, por exemplo, também foi compositor musical. Ele é o autor de "Rabo de Peixe", em parceria com Alcir Pires Vermelho, lançada em 1954.

A programação inclui variedades e documentários. O primeiro deles aborda curiosidades sobre Noel Rosa.Morto aos 26 anos de tuberculose, ele inspirava cuidados dos amigos, segundo o programa. Certa vez, um deles lhe chamou a atenção no bar por estar bebendo cerveja e conhaque.Noel argumentou que a cerveja era rica em nutrientes. "Mas para que o conhaque?", perguntou o amigo. "Não gosto de comer nada a seco", emendou o boêmio.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A respeito de revistas customizadas

No começo do mês li coluna do Marcelo Coelho, na Folha, em que ele tece considerações das quais eu não discordo nem em uma linha, a respeito do mercado de revistas customizadas. Achei um baita artigo. Ou crônica, não sei como definir.

Abaixo:

São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2010
MARCELO COELHO

Gordura para todos


HÁ REVISTAS para tudo. Se você é criador de buldogues ou representante de vendas no setor de aparas de metal, certamente existe alguém pensando em publicar, todo mês, reportagens e artigos voltados para a sua área de interesse.

A imaginação "revisteira" nunca falha. Descobre-se uma celebridade que já teve um buldogue de estimação, ou cujo avô fez fortuna com resíduos de alumínio: já está pronta a entrevista da capa. Do cinema à gastronomia, existirá sempre uma coisa que se conecta com alguma outra e, quando menos se espera, o universo inteiro será revisto e interpretado do ângulo escolhido.Nada mais parecido com uma galáxia do que uma extensão de lascas de níquel, nada que nos aproxime tanto do budismo quanto os hábitos de um buldogue; o candidato ecologista tem algo a dizer sobre a reciclagem do chumbo, e determinado técnico de futebol se inspira, quem sabe, na moral canina.Já que tudo pode se transformar em "nicho de mercado", é apenas uma questão de tempo para que tudo se transforme em revista.

Pensando assim, até que demorou muito para o surgimento de uma revista de moda voltada para mulheres acima do peso. Recebo o primeiro número de "Beleza em Curvas" (editora Digicamp).Trata-se de uma "revista para quem ampliou o seu espaço para ser bonita", diz a capa. E só num desbragado esforço de eufemismo estamos falando de "gordinhas", de pessoas com "alguns quilinhos a mais".As fotos, as dicas de consumo e os discursos de autoestima se voltam para mulheres em estado de categórica obesidade. Existe "vida feliz acima do tamanho 46", diz o editorial. "Viemos para dar espaço para todas as mulheres reais deste gigantesco, miscigenado e plural país", continua o texto.Gigantesco? Difícil saber se há controle consciente sobre os jogos de palavras que, naturalmente, ficam de tocaia quando se escreve sobre um tema tabu, como o da gordura feminina.

Domínio de texto, de qualquer modo, não é o forte dos redatores da revista. Cada página traz quantidades imoderadas de erros gramaticais, e o leitor deve estar preparado para encontrar frases como esta: "O amor é uma palavra antiga, mas um conceito pouquíssimo utilizado no geral".Ou ainda esta: "Numa antiguidade quase presente, a mulher era vista pelos maridos como reprodutora feminina".Mas vamos em frente. São tantas as páginas de mulheres realmente gordas, jovens, bem maquiadas e afirmativas, que o principal objetivo psicológico de "Beleza em Curvas" acaba por ser alcançado: naturaliza-se um pouco a obesidade e reforça-se a sensação de como também é estranho o padrão da anorexia.

Uma vez posta em funcionamento, a lógica "revisteira" já não consegue parar: tudo pode ser entendido da ótica obesa. De Rubens a Botero, a pintura dará assunto para muitas edições. De Preta Gil a Marilyn Monroe, sempre se pode destacar alguma celebridade menos obcecada com a balança.Apesar disso, há limites para essa "ação afirmativa", ou melhor, "autoafirmativa".

Um assunto não pode deixar de ser tabu nas páginas de "Beleza em Curvas".Trata-se da comida. A única reportagem sobre o tema insiste na importância da alimentação saudável: cenouras, tomates, grãos de soja. A mulher gorda e bem resolvida parece ter, aqui, a curiosa característica de não se interessar por chocolate ou marzipã.É dinâmica, esportiva, sensual. Alimenta-se com moderação, veste-se bem, não tem complexos.Ou seja, é uma mulher magra -só que com mais peso.

A contradição vem à tona num só momento da revista: uma reportagem sobre cirurgias de redução do estômago. A afirmação da gordura convive com a sua negação.O "padrão anoréxico" pode ser criticado. Mas há outra ditadura, na verdade, a ser combatida -e uma revista para gordas não difere de qualquer outra revista nesse aspecto. Trata-se da ideia de que, por uma espécie de auto-hipnose regada a muito consumo, você pode ser feliz sendo como é."Ser como você é", nessa linguagem, equivale a ter um lugar definido no mercado consumidor. Sua identidade se afirma pelo que você consome -e assim se criam, em última análise, obesos de todos os tipos: os de comida e os de cosméticos, os de aparelhos eletrônicos e os de livros, os de buldogues e os de aparas de metal. coelhofsp@uol.com.br

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ruas de SP rendem microrroteiros

A coluna do Dimenstein para a Folha (caderno Cotidiano) hoje apresentou um interessante - e simples - trabalho que tem São Paulo como fonte de inspiração. Ele consiste basicamente de frases formuladas a partir do cotidiano, que Laura Guimarães formulou ao longo dos anos, desde que era pequenina.

Embora formada em teatro e cinema, ela pagou suas faculdades trabalhando como redatora em agências de publicidade. Para satisfazer seus anseios artísticos, ela escreveu em seu caderno vários pequenos roteiros, que tinham como principal fonte de inspiração o que ela via nas ruas.

Esses pequenos roteiros sintetizaram-se ainda mais, para se enquadrarem dentro dos 140 toques do twitter, e ganharam uma nova denominação: microrroteiros.

Por exemplo:

“Nunca Trairia Seu Marido
Faltava coragem. Mas não abria mão do ritual de pendurar as calcinhas pra fora da janela enquanto o vizinho a observava."

Ou:

“Platônicos
Atravessar a rua. Ele pega sua mao. Ela tira por reflexo. Queria ter deixado.”

Alguns desses microrroteiros viraram lambe-lambes, que ela espalhou, nesses dias e junto com alguns amigos, pelas redondezas da Rua Teodoro Sampaio.

O mais interessante é que agora os microrroteiros chegaram às mãos criadoras de desenhistas, cartunistas, e até músicos, que estão empenhados em ilustrar essas diminutas narrativas.

Veja que legais:

Marcelo e Magno Costa:

Mozart Fernandes:


Dá uma olhada no blog de Laura Guimarães. Ele se chama "No Passo do Roteiro".

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Minha primeira cobertura!


Hoje tem início o 5º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo. A cobertura do evento, realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), será feita pelos estudantes do projeto Repórter do Futuro -equipe da qual participo -, orientados pela jornalista Luciana Kraemer.

A programação se estende até o dia 31 de julho. Hoje, quinta, serão ministradas oficinas durante o dia e, à noite, será realizada a solenidade de abertura em homenagem à jornalista Dorrit Harazim, co-fundadora da revista Piauí e também de Veja. Nos dias 30 e 31 acontecerão palestras com jornalistas de diferentes áreas.

A programação completa do evento, com nome dos palestrantes, horário e tema das palestras, pode ser conferida aqui.

O quê
A Abraji foi criada em 2002, em resposta a um dos crimes mais bárbaros contra jornalistas durante o período democrático, a execução do repórter Tim Lopes por traficantes de drogas da Vila Cruzeiro, quando ele fazia a série de reportagens "Feira das drogas" para o JN, da Gobo. A reportagem levou o prêmio Esso de jornalismo do ano seguinte.
A instituição é uma das apoiadoras do projeto Repórter do Futuro.

A cobertura
Dois grupos compostos por sete integrantes cada, se revezarão na cobertura das palestras. Após o término da primeira rodada de palestras, o grupo A alimentará o blog do evento, em uma redação montada exclusivamente para a equipe de cobertura, enquanto o grupo B fará a cobertura da próxima rodada.

Uma terceira equipe atuará na cobertura dos corredores e ficará responsável por realizar entrevistas curtas com jornalistas participantes do evento e alimentar o twitter.

Minha parte
Sexta entro às 9h para cobrir a mesa "Processos contra jornalistas depois do fim da Lei de Impresa". Às 14h, fico com "Os problemas que as cidades enfrentam para sediar uma Copa do Mundo". Sábado, entro um pouco mais tarde: às 11h, e cubro "Caso Zoghbi (sobre o qual ainda não me informei) e mensalão do DEM"; e, por fim, às 16h cubro a mesa "como realizar a cobertura de políticas sociais", ministrada pela Adriana Carranca, uma competente jornalista do Estadão que já foi correspondente no Afeganistão.

É possível que saia um livro proveniente do resultado dessa nossa cobertura - com os devidos créditos. Será gratificante ver, pela primeira vez, meu nome registrado em uma publicação de grande abrangência.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Copa finalmente começou

Hoje aconteceu o show de abertura da Copa do mundo 2010 na África, que não irá eliminar a cerimônia de abertura amanhã antes do jogo entre a seleção anfitriã e o México.

Quero comentar apenas a perfomance de uma das atrações do longo show, que teve participações de diversas atrações internacionais bem como de artistas do continente. A estonteante Alicia Keys. Que mulher, que voz, que corpo, que postura em palco.

Não saberia dizer se ela é uma popstar, uma gangstar woman, uma diva ou simplesmente uma cantora norte-americana de ascendência negra. O que sei apenas é que ela faz simplesmente o que sabe fazer: cantar, tocar - e encantar. Não precisa de mega-produção, de super-dançarinos com coreografias as mais espantosas, não veste roupas super-decotadas e sensuais que conferem a quem a usa o estatuto de uma heroína ou algo próximo disso. Alicia, como todo mundo sabe e viu nesse show, somente cantou (às vezes tocando seu piano) e dançou discretamente, à sua maneira. E por isso foi, na minha opinião, quem roubou a cena.

Shakira, legal... mas está muito magrinha. Ela esteve muito melhor no show que fez na final da Copa da Alemanha. Fergie, muita produção em estúdio para pouca voz.

Não sei quais atributos definem uma popstar. Alicia Keys, para mim, é o modelo perfeito de uma. Quando menos é muuuito mais.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Há dois posts atrás escrevi um miniconto sobre um professor que lecionava para índios de comunidades próximas ao município de São Gabriel da Cachoeira, nos confins do Amazonas.
Uma repórter do caderno Mais! , da Folha, realizou uma reportagem bem similar ao que escrevi. Isso talvez seja uma prova de que meu conto é verossímil mesmo...
Ei-la:


São Paulo, domingo, 09 de maio de 2010. Caderno Mais! FOLHA DE SÃO PAULO.

A exceção e a regra
Projeto educacional no Amazonas adapta ensino médio aos idiomas e práticas indígenas, mas enfrenta dificuldade para ser aceito por autoridades do setor

A língua tuiuca, antes à beira da extinção, agora é falada por todos, dentro e fora da sala de aula


MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL AO ALTO TIQUIÉ (AM)

No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. "Só é índio quem se garante."
Está na cara que Aloisio Cabalzar, 41, antropólogo de ascendência suíça que viaja à minha frente na voadeira (lancha de alumínio), não é índio. Protetor solar e o romance policial "Alerta Negro", de Patricia Cornwell, são seus companheiros fluviais mais constantes. Mas ele fala a língua tuiuca com fluência após duas décadas de andança pela mandíbula da região da Cabeça do Cachorro.
Cabalzar, do Instituto Socioambiental (ISA), de São Paulo, é o paciente cicerone da reportagem da Folha na viagem de dez dias e várias "cachoeiras" (corredeiras) pelo extremo noroeste do Estado do Amazonas. Objetivo: conhecer as excepcionais escolas tuiuca e tucano das comunidades ao longo do rio Tiquié, afluente do Uaupés, por sua vez um tributário do rio Negro.
Metade desses dias foi padecida em voadeira, a maior parte com motor de popa de 40 HP. Menos potência, e a viagem pode se estender por uma semana -só na ida.
Já no final da primeira jornada, o antropólogo conversa com o jovem carona Marcos Resende, habitante de São Pedro (ou Pikorõaburo, em tuiuca, nome de uma larva de besouro que come o miolo do tronco do buriti), nosso destino final. O jovem tampouco parece índio. Cabelos encaracolados, boné de hip-hop virado para trás, camiseta Racionais MC's -de quem nunca ouviu uma música, aliás.
A aparência engana. Na primeira refeição em São Pedro, na casa de seu padrasto, Adão Barbosa, Marcos fala tuiuca. Serve-se com as mãos, como todos, das maniuaras (saúvas) torradas, da cutia e do beiju. Não reage com lacrimejo e espirros ao excesso de pimenta, como os convidados.
Quatro dias depois, no caxiri de despedida para os visitantes, festa na maloca regada à bebida de mesmo nome fermentada da mandioca, Marcos tocaria flauta e dançaria com outros moços e moças. Sem o boné, mas tampouco havia adorno de penas à vista -só bermudas e camisetas de muitas cores. Seu pé direito socaria o chão de terra, mantendo o ritmo e a tradição. Ex-aluno do ensino médio, Marcos já é professor.

Língua ameaçada
"Antigamente, sábio era quem obedecia às regras", pondera Higino Pimentel Tenório, 55, a autoridade reconhecida em São Pedro. Professor há 35 anos, Poani -seu nome cerimonial em tuiuca- lamenta que os jovens tenham abandonado muitos costumes.
Uma das interdições importantes, explica Poani, é a abstinência sexual de 15 dias antes de beber o caapi (bebida alucinógena similar à ayahuasca). "Quem obedece às regras tem mais poder, progride mais", afirma o professor sobre a sabedoria veiculada pelas "mirações" desencadeadas pela bebida. "[A gente vê] muita cobra colorida no vômito, entende a música e as palavras da cachoeira."
Seu orgulho é ter revertido o "êxodo rural", como se refere à saída de jovens para as antigas missões salesianas da região, Pari-Cachoeira e Taracuá, ou para a sede do município, São Gabriel da Cachoeira. A regra era abandonarem as aldeias em busca de educação.
São Pedro ficou reduzida a 14 famílias, em 2000. Hoje são 23. A língua tuiuca, antes à beira da extinção, agora é falada por todos, dentro e fora da sala de aula. Inclusive pelos alunos tucanos, desanas, yebamasãs, barás ou miriti-tapuias vindos de aldeias vizinhas para os módulos de 15 dias, intercalados com 15 dias passados na comunidade de origem, para trabalhar com os pais na roça e na pesca.
Os moços não precisam mais mudar-se para São Gabriel, 700 quilômetros rio abaixo, para cursar o ensino médio. A primeira turma do secundário da escola Utapinopona -"Filhos da Cobra de Pedra"- formou-se no ano passado, Marcos Resende entre eles (hoje dá aulas para a nova turma da escola comunitária).
Agora só lhes falta o reconhecimento de um diploma oficial. E já discutem como poderia ser um ensino superior indígena.

Paisagem como projeto
A casa de apoio construída em São Pedro pelo ISA, que auxilia a escola na localidade desde 1994, tem três ambientes. O telhado sem forro é de caraná (Mauritia carana), palmeira aparentada com o buriti (M. flexuosa). Não deixa a desejar numa região em que pode chover até 3.600 mm/ano. Resistiu, sem muitas goteiras, a vários temporais.
O quarto sem porta abriga as redes dos visitantes. A cozinha diminuta é território de Jorge Gabriel da Silva, 52, piloto de voadeira e cozinheiro da etnia desana. O cômodo maior pode ser sala de aula ou de refeição e dormitório extra, dependendo do horário.
Das paredes pendem cartazes com desenhos elaborados de perfis de vegetação em capoeiras: plantas vermelhas são as cultivadas, verdes, as pioneiras (primeiras a se instalar) e azuis, as de floresta madura.
Às 14h do dia 30 de março, excepcionalmente, é hora de aula expositiva. As tardes são em geral dedicadas a atividades como desenho de perfis de vegetação e compilação de dados em tabelas, não à exposição.
A rotina foi alterada para acomodar a agenda da reportagem, que pela manhã acompanhou uma atividade de campo dos alunos (coleta de mel e reprodução de colmeias de meliponicultura -criação de abelhas sem ferrão).
São 19 alunos na sala, 15 homens e 4 mulheres na faixa de 15 a 19 anos. Há dois computadores laptop, além daquele em que Pieter-Jan van der Veld, 46, agrônomo holandês contratado pelo ISA, lê o tema do dia: "Apresentar uma pesquisa sobre paisagem florestal". Os três aparelhos e a única lâmpada do recinto são alimentados por energia acumulada em baterias de caminhão por um painel solar fotovoltaico.
O português sai com um acento lusitano e palavras esparsas em espanhol, mas Wisõka -Esquilo, apelido do professor em tuiuca, por causa dos cabelos avermelhados- garante que os jovens entendem.
Todos ali falam pelo menos três idiomas (português, tuiuca e tucano, a língua franca do Tiquié) e escrevem as duas primeiras. Recebem visitantes do Brasil todo e do exterior, interessados na experiência peculiar de educação indígena. "O meu é só mais um sotaque do português para eles", tranquiliza Van der Veld.
A aula difere muito do ensino médio tradicional nas redes públicas de outros Estados e das grandes cidades amazonenses. Além dos módulos em blocos intercalados de 15 dias, dura quatro e não três anos, divididos em ciclos de dois. Em lugar de um currículo segmentado em disciplinas, os alunos aprendem com base em pesquisas e projetos temáticos.
O projeto atual é um levantamento de "paisagens", ou fisionomias vegetais, eleitas pela comunidade -alunos, pais e professores. O estudo se concentra nas quatro principais: floresta ("makaruku"), capoeira ("wiariro", roça abandonada), igapó ("boareko", floresta de inundação sazonal) e campinarana ("tataboa", uma espécie de caatinga amazônica que viceja em solos arenosos e encharcados, origem da "água preta" dos igarapés e rios da bacia do Negro).
Há dezenas de subdivisões para registrar concentrações de recursos importantes. "Netahta" é buritizal; "mihpitahta", açaizal. Em foco, na pesquisa, estão os caranazais ("mui boa"), onde folhas para renovar telhados são colhidas. Se o estoque natural não for bem manejado, a matéria-prima escasseia, o que pode forçar a mudança de local da aldeia.
Na semana anterior, o grupo passara quatro dias acampado, identificando, contando e medindo árvores e arvoretas com mais de um dedo de espessura num transecto (área delimitada) de mil metros quadrados. Os dados coletados são organizados em listas (todos os tipos de árvores encontradas), depois em tabelas (com as quantidades de cada tipo).
Listas e tabelas são necessárias para produzir gráficos, explica Van der Veld. A tradução para o tuiuca fica a cargo do professor habitual da classe, José Barreto Ramos, 50. Ele também se chama Poani, um dos nove nomes de homem disponíveis na língua tuiuca; para as mulheres, há seis.
Nesse idioma, a entonação modifica o significado das palavras. Tudo soa incompreensível para o forasteiro, mas a tradução vem entremeada de palavras portuguesas: "gráfico", "tabela", "lista"...
Conceitos inexistentes numa cultura em que, poucas décadas atrás, só se contava até 20 (soma de todos os dedos e artelhos). "O próprio conhecimento quem manifesta é a língua", teoriza o outro Poani (Higino Tenório).
A aula evolui para a confecção de um gráfico comparando as quantidades de três árvores em dois transectos. Todos os alunos têm pranchetas, cadernos e réguas. Anotam tudo que o professor escreve no quadro, em português, com letras de forma e caligrafia bem desenhada. O silêncio e a atenção são dignos de nota, para quem conhece a atmosfera do ensino médio nas capitais, retratada no filme "As Melhores Coisas do Mundo", de Laís Bodanzky.
Terminada a explicação da tarefa, a dificuldade se torna visível: raros são os que começam de imediato a traçar o gráfico de barras. Os alunos empacam na correspondência entre número de árvores e centímetros do eixo y e na escolha da escala para a figura caber na página. Só então começam a falar entre si, e o observador conclui que ajudam uns aos outros. Van der Veld dá a tarefa por completa após uma hora e meia de aula.
"A parte difícil é a matemática", diz o holandês. "Enfrentam problemas com coisas técnicas e abstratas, mas não com a parte prática." Na sua avaliação, os alunos da escola tuiuca têm nível melhor que os técnicos de Rondônia com quem trabalhou por um ano em 1998, para fazer amostragens de solo no macrozoneamento do Estado. "Os problemas são os mesmos da educação do Brasil [todo]."

Caranazal abusado
Dois dias depois, a reportagem entra na mata com Van der Veld e cinco estudantes, para uma demonstração de levantamento num caranazal. Há dificuldade para acompanhar a marcha, firme e aplicada como a caligrafia exibida em sala de aula. São 45 minutos para cobrir cerca de dois quilômetros desde a margem do Tiquié, segundo o GPS. O jornalista e o repórter-fotográfico aprendem rápida e dolorosamente o significado da palavra "caba" (marimbondo).
Chegamos ao caranazal pouco depois das 10h. Embora a palmeira não componha mais que 3% das 139 plantas inventariadas pelos tuiucas nessa paisagem vegetal, suas folhas em leque estão por toda parte.
Visível, também, é a decepção do agrônomo professor: só há indivíduos juvenis de Mauritia carana, nenhum adulto com tronco, muito menos com os 15 metros que pode alcançar na fase reprodutiva. A maioria dos caranás é "pu" (criança).
"Um caranazal abusado", decreta o holandês. Nem mesmo a regra tradicional de deixar pelo menos três folhas em cada pé parece ter sido observada pelos últimos coletores. O manejo inadequado implica que a área precisará de muitos anos para voltar a ser explorada, porque não sobraram plantas-mãe para lançar sementes e recompor a população.
Não deixa de ser didático para os tuiucas Jorge Rochas Gutierrez, Josival Azevedo Rezende e Walter Marques Tenório, além de Jodair de Jesus (tucano) e Angel Maria Sanches (bará), os estudantes de ensino médio encarregados da demonstração.
Sua tarefa é demarcar um transecto, a área para levantamento da paisagem. Começam por assinalar uma árvore de porte facilmente identificável na mata rala e fixar nela uma plaquinha de metal. É o ponto de referência, marcado no GPS.
A partir dele se estende a trena por 20 m (numa pesquisa real são 100 m), iniciando a demarcação do polígono com 10 m de largura. Fincam-se estacas a cada 5 m, para fixar barbantes perpendiculares que dividirão a área em quatro setores, para facilitar a contagem.
O ângulo é definido com auxílio de bússolas de fundo transparente, que permitem enxergar o fio por baixo e alinhá-lo. Van der Veld pergunta quanto é um ângulo reto, para marcar o canto do retângulo do transecto. A primeira resposta é 50, logo corrigida para 90 -não sem algum debate.
Os alunos têm então de somar ou subtrair os 90 da orientação registrada para a trena (230), e a barreira da abstração volta a materializar-se. Fazem e refazem contas a caneta na palma das mãos, até chegar às respostas corretas (320 e 140). Quando surgem quantidades negativas, então, a dificuldade cresce de forma exponencial, conta o professor holandês.

De volta à tanga
Juntos, os rapazes acabam resolvendo todos os problemas que Van der Veld propõe. No processo, ganham ferramentas e habilidades para entender melhor e manejar a dinâmica natural de um recurso decisivo para os tuiucas e seus vizinhos. Já se foi o tempo em que os jovens tinham de aprender com livros -dos padres salesianos ou do MEC- que falavam de maçãs e uvas, frutas que nunca chegam ali.
"Abrimos opção para cada jovem buscar qual tipo de conhecimento vai buscar fora para solucionar os problemas da comunidade", afirma o líder Higino Tenório. Os projetos de pesquisa sempre têm relação com o sustento material e cultural dos tuiucas e dos povos vizinhos (entre os quais buscam mulheres para casar): a palha do caraná, peixes e piscicultura, meliponicultura, roça -mas também mitos, cantos, adornos e benzimentos.
A ideia por trás da nova escola sempre foi casar a "ciência dos brancos" com a valorização do conhecimento indígena. E, no caminho, aproximar moços e velhos, revivendo regras cujo cumprimento estava se tornando exceção. "Nossos antepassados [homens] passavam três meses acampados na mata, aprendiam a fazer cestaria", conta Tenório. "[Eram] regras para dotá-los de conhecimento, força e espírito."
Na própria comunidade de São Pedro houve resistência à proposta de educação indígena e alfabetização em língua tuiuca. Fiéis ao ensino rígido dos salesianos, que os ensinaram a ler, escrever e contar até mais que 20 e os ajudaram a libertar-se das dívidas com os patrões da borracha e comerciantes dos regatões, muitos pais acharam que seria um retrocesso.
"Nossos próprios parentes não chegavam a entender", rememora o professor José Ramos. "[Achavam que] atrapalharia, traria atraso, os filhos não poderiam aprender português, voltariam para trás e a usar tanga como nossos antepassados", diz o outro Poani, sempre de calça comprida, cinto e camisa polo.
"Os padres mandavam bater nas crianças. Isso acabou", comemora. "A escola agora tem computador, tecnologia, oficinas, bússola e GPS. Nossos filhos só falavam tucano, custou dois, três anos para voltarem a falar tuiuca. Quando um aluno está doente, manda carta [para o professor] escrita em tuiuca."

Ensino superior indígena

As resistências comunitárias foram pouco a pouco vencidas. Hoje, a língua tuiuca ganhou algo que nunca teve: uma literatura própria. Fruto de duas décadas de trabalho do casal Flora Dias Cabalzar e Aloisio, o "Arusu" (arroz).
Eles foram "peças fundamentais", segundo Higino Tenório. "Eu penso várias ideias, mas não sei colocar as palavras certas", diz o coautor tuiuca. "Eles sabem escrever, ouvindo nossas ideias."
Já são oito livros publicados no idioma em uma década. Um ainda está no prelo: "Utapinopona Kuye Poseminiã Niromakaraye" (Adornos Cerimoniais dos Tuiucas). Resultou de um projeto temático da escola em que alunos recolheram entre os mais velhos descrições, usos e explicações sobre a origem dos ornamentos.
A experiência "sui generis" de educação indígena na região da Cabeça do Cachorro, que inclui os tucanos do Tiquié e os baniuas do rio Içana, gerou também várias teses e publicações em português. O livro mais recente é "Manejo do Mundo - Conhecimentos e Práticas dos Povos Indígenas do Rio Negro, Noroeste Amazônico" (organizado por Cabalzar, do ISA), lançado num seminário com o mesmo título, que se realizou de 8 a 13 de abril em São Gabriel da Cachoeira.
O seminário reuniu representantes dos vários povos da região, inclusive da Colômbia, para trocar experiências de educação baseadas em projetos de pesquisa sobre a natureza e delinear como poderia ser um ensino superior indígena. Trata-se de formar professores de ensino básico com nível universitário, como exige a lei, mas com currículo que vá além da formalização muitas vezes medíocre oferecida por universidades da Amazônia.
O encontro resultou numa lista com 13 desejos para um ensino superior indígena. Coisas como ser inovador, ter relação com o território da bacia do rio Negro e conexão direta com as comunidades. "Qual seria o conhecimento mesmo, de nível superior, para o jovem conseguir viver aqui?", pergunta Higino Tenório. "É inviável querer transformar o índio em intelectual. Quem faz curso superior quer ir para a capital."
Mais sintomática é a lista do que os índios não querem que ele seja: só uma licenciatura intercultural, numa única língua, com predominância do conhecimento científico ocidental e estruturas burocratizadas. A burocracia estatal, aliás, é no momento a grande pedra no caminho das experiências educacionais do rio Negro.
Enquanto se limitavam ao ensino fundamental, as peculiaridades da educação comunitária foram sendo acomodadas com as regras municipais de São Gabriel da Cachoeira, onde cerca de 90% da população de 42 mil habitantes e até o prefeito são indígenas. Ao alcançar o nível médio, porém, passaram para a alçada da Secretaria Estadual de Educação amazonense, e o reconhecimento oficial das turmas já formadas ainda não saiu.
Da duração -quatro e não três anos- à inexistência de avaliação com notas ou de conteúdo curricular padronizado, pouca coisa se enquadra nas normas do Conselho Estadual de Educação do Amazonas.
"[O ensino médio tuiuca] é um projeto avançado, até para a educação indígena", afirma o professor de física e matemática Inafran da Silva Bastos, técnico da Gerência de Educação Escolar Indígena da secretaria estadual. "Na hora de reconhecer, a própria Seduc não estava preparada. É só uma questão de tempo e de se adequar -no mínimo dois a três meses."
A nova gerente da área, Alva Rosa, da etnia tucano, tomou posse em 19 de abril, Dia do Índio. Bastos informa que a gerência trabalha na adaptação do currículo estadual para a educação indígena, mas que o processo ainda está "no início".

Aracu, acará e araripirá
No último dia de março, a reportagem desce o Tiquié até a comunidade tucano em Cachoeira do Caruru, menos de meia hora de voadeira com o motorzinho de popa de 15 HP. Vamos conhecer a estação de piscicultura montada em 1999 por uma associação de 12 comunidades tucanas e tuiucas no Alto Tiquié.
O guia da visita é o coordenador-gerente do projeto, Lucas Alves Bastos. A escola, em paralelo ao projeto de piscicultura, desenvolveu uma pesquisa relacionando enchentes e vazantes, chuvas, piracema (desova dos peixes) e constelações que "caem" do céu no poente, como a da Jararaca (em novembro).
O projeto tem por meta reproduzir e distribuir para as comunidades espécimes das espécies nativas aracu-riscado (Leporinus agassizii), aracu-três-pintas (L. friderici), acará-trovão (Satanoperca jurupari) e araripirá (Chalceus macrolepidotus). Machos e fêmeas maduros são capturados e têm a hipófise retirada para extração de hormônio, depois injetado debaixo da nadadeira peitoral de outros peixes para estimular a produção de gametas (espermatozoides e óvulos).
Controlando a temperatura dos animais, os técnicos indígenas definem o momento de espremer os peixes e colher o material para fertilização em bacias, que exigem trocas de água de dez em dez minutos. Transfere-se o material para incubadoras com água corrente, durante sete dias, para que os embriões eclodam e se desenvolvam. Eles são depois contados e transferidos para os viveiros, tanques de 10 m x 20 m x 1,5 m escavados no terreno.
No momento, as incubadoras estão vazias. Uma semana antes, 34.300 pós-larvas de araripirás, com três milímetros, foram produzidas em Caruru. Cerca de 2.000 sobreviverão nos tanques e alcançarão dez centímetros, quando serão enviadas para engorda nos viveiros comunitários e familiares, como os de São Pedro.
O dia anterior fora de mutirão para cavar um terceiro viveiro na vizinha aldeia tuiuca, parceira dos tucanos de Caruru. Meia centena de homens, mulheres e crianças trabalhavam juntos, sob o sol a pino. Já há dois lagos, mas um está vazando. É preciso abrir outro, trabalho para cinco dias.

Palavra de índio
"Nossa ideia é fazer criação para o rio descansar", explica Higino Tenório, líder dos trabalhos. "Com tecnologia -pilha, zagaia, malhadeira- a pesca deixou de ser seletiva e inteligente, como era feita com pari [armadilha de varas], e se tornou predatória."
Tuiucas e tucanos do Tiquié entendem que foram gente-peixe, antes de se transformarem em gente-verdadeira, e assim escolheram permanecer. Para isso, precisam de flautas do jurupari (que mulheres e crianças só podem ouvir, não ver), de folhas do caraná, aracus, acarás e araripirás -além de uma tecnologia que fuja à norma da superexploração.
Em duas palavras, buscam na prática as tão faladas "inovação" e "sustentabilidade" e elegeram o ensino como canoa para realizar a travessia. "[A escola] é a instituição externa que eles conseguiram manejar", resume Aloisio Cabalzar.
A regra do senso comum vale também para os índios: educação é a garantia de algum futuro. Um futuro índio.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

A primeira vez a gente nunca esquece

Um texto que fiz recentemente no qual conto como foi a experiência da minha primeira redacao:


A primeira vez a gente nunca esquece

por Thiago Fuzihara Crepaldi

Meu batismo com a língua portuguesa se deu quando eu estava no segundo ano do Ensino Médio do Colégio Palmares. Era um garoto como outro qualquer, que vivia lá os seus dezesseis anos. Ou seja: achava que tudo o que saía da boca dos meus pais era piegas ou careta; que, mesmo sendo menor de idade, já tinha autonomia e resistência para poder beber como um sujeito maior de idade; que sabia como ninguém seduzir as pessoas do sexo oposto;e que minhas ideias eram capazes de revolucionar o mundo.

Redações já havia feito uma penca delas, mas todas sempre naquela linha “minhas férias...". Acontece que a professora de língua portuguesa daquele segundo ano era uma professora diferente - uma baita professora. Éramos inundados por textos filosóficos, literários, existenciais (ou mesmo os três ao mesmo tempo: filosófico-literário-existencial), humanos, enfim, e posteriormente forçados ou, melhor, estimulados a refletir em grupo sobre as questões que aqueles belos textos suscitavam. Foi o meu primeiro contanto com o desespero da condição humana, através de Saramago. Depois de uma dessas acaloradas discussões fiquei com um pensamento fixo matutando na cabeça e fui viajar para o meu sítio, como de costume, com o dever de entregar uma redação na aula da semana seguinte.

Naquele final de semana foi a primeira vez que eu realmente sentei com o propósito de escrever alguma coisa decente. Fiquei horas para esboçar um ponto de vista claro, seguido de eixo-argumentativo e uma conclusão, como preconizou a professora. Não obstante a demora, a redação saiu. Com o pueril título: “Ciência vs Literatura”. Basicamente, o que tentei sustentar era que a ciência não era eterna porque era, antes, temporal; e que a literatura o era porque era atemporal, transcendia a linearidade dos séculos.

Na aula seguinte a da entrega, a professora separou três redações para ler em sala, a minha dentre elas. Julia, a magnífica professora de quem sempre guardarei lembranças, elogiou bastante o potencial temático-reflexivo de minha redação. Com todo o seu repertório ela afirmou que eu, mesmo sem saber, havia definido a dualidade do homem. E, para meu orgulho e espanto, citou um trabalho de Edgar Morin, eminente pensador contemporâneo, exatamente sobre essa tal dualidade humana: “Sapiens Demens”. Desde então, o garoto, que achava que tudo podia dentro da sua alienada bolha adolescente, tomou gosto pela coisa. E, vez ou outra, aventura-se na especulação do universo.

Conheça o cara:
Conferência "Pensar o Sul", no SESC, quando veio ao Brasil.

domingo, 16 de maio de 2010

Cliques do fotógrafo Bob Wolfenson

Bob Wolfenson é um fotógrafo paulistano famoso. Do seu vasto trabalho, o que mais me chama atenção é o retrato das celebridades. Nos ''encontros efêmeros'' - como ele define os ensaios fotográficos - busca sempre registrar o extraordinário desses notórios.


A atriz Fernanda Montenegro


Os poetas Augusto e Haroldo de Campos


A modelo Raquel Zimmermann


O ator Wagner Moura

O poeta João Cabral de Melo Neto

Os grafiteiros OsGêmeos

O cantor Caetano Veloso


A modelo Gisele Bundchen

A jornalista e escritora Fernanda Young

A atriz Juliana Paes


O cineasta Fernando Meireles

O ator Reinado Giannechini e a modelo e apresentadora Giane Albertoni

A cantora Rita Lee

O músico Ermeto Pascoal

Bob Wolfenson, fotógrafo

CV*:Paulistano do Bom Retiro, começou a fotografar aos 16 anos, quando ganhou uma câmera do pai. Cursou ciências sociais na USP, começou a trabalhar como fotógrafo na Editora Abril e, em 1982, foi ser assistente em Nova York. Com 35 anos de carreira, já trabalhou para as principais publicações brasileiras, fotografa para moda e publicidade, faz retratos, tem cinco livros publicados e edita a revista semestral S/N. Sua última exposição foi A Caminho do Mar, sobre as paisagens sombrias do pólo petroquímico de Cubatão, passagem habitual de sua infância.

*Fonte: Bravoonline.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Conto verossímil

Todos os dias o bondoso professor enche o tanque de sua voadeira com gasolina para que ela possa decolar e transpor toda a selva amazônica rumo ao municípo de São Gabriel da Cachoeira. Se fosse de barco, às mergens do Rio Negro, só poderia dar suas aulas de oito em oito dias, posto que demoraria quatro para chegar e mais quatro mais voltar a Manaus, onde reside com sua mulher e sua pequena cria de um ano de idade.

De lá do alto do céu, enquanto toma vento na cara e sente o cheiro do combustível queimando no valente motor 60hp, ele busca na sua memória aquela imagem fotográfica de sua mulher com sua filha, como que para ter forças para enfrentar as cinco horas de vôo até o longínquo município, onde 90% da população é constituída de três tribos indígenas. Ele se contenta com esse fugaz pensamento; todos os dias o faz, como uma prece. Depois ele se esquece, quero dizer: não se esquece, mas deixa de pensar nisso para dar lugar a outros pensamentos. Agora se concentra na revisão da aula que preparou; será que não se esqueceu de nada? É essa a pergunta que logo faz. No resumo mental de sua aula, concluiu seguramente que não. Pensa em cada um de seus alunos; as dificuldades de cada um deles; a despedidada que deu - e que lhe deram - a cada um deles no fim da aula, ao lado da porta.

Sistemas agro-florestais, micro-pecuária, pesca sustetável, atividades que os indígenas desde os primórdios da raça conheciam por plantar, caçar e pescar agora ganham as designações da era tecnocrata. Mas eles não se queixam disso. Pelo contrário: eles têm apetite disso. Quanto mais palavras novas, mais integrados e menos excluídos eles se sentem.

Nao há mais vagas no campus do Instituo Federal do Amazonas. É a única instituição pública que oferece curso superior e profissionalizantes naquela região. Por enquanto o professor aterris com sua voadeira, mas espera, quem sabe num futuro próximo, ir para lá de hidroavião, fretado, claro, e carregado de jovens, brilhantes e corajosos professores como ele.

sábado, 24 de abril de 2010

Entrevista com o mito Sr. Monarco da Portela

Vai aqui uma entrevista cedida pelo Monarco da Portela, um dos grandes compositores da Azul e Branco, para a revista Aventuras na História (edição 42).


Compositor desde os anos 40, Monarco é uma enciclopédia. Coleciona histórias: limpou a mesa de bilhar de Villa-Lobos, guardou carros no Jornal do Brasil, dividiu (vários) conhaques com Cartola, compôs com Candeia, ouviu lamentos de Carlos Cachaça, grande companheiro de Noel Rosa.
Atualmente, ele se dedica às caminhadas matinais - “momentos de maior inspiração” -, à sua mulher - “minha pretinha de fé” -, a compor vez por outra e a exercitar a memória, lembrando-se de sambas que são verdadeiras relíquias, não escritos em lugar algum.

Hildemar Diniz é um homem alinhado. Veste camisa social impecável, calça de tergal bem passada, cinto combinando com o sapato branco. Toda quinta-feira ele sai do Riachuelo, bairro na zona norte do Rio de Janeiro, onde mora com a mulher Olinda, para almoçar um belo cozido na Cinelândia, no centro, acompanhado de pelo menos um de seus filhos. São dois: Mauro e Marcos.
Como o pai, compositor, a dupla tem canções nas vozes de Zeca Pagodinho e Marisa Monte. “Eles já nasceram numa roda de samba”, diz o músico, alisando os cabelos finamente penteados.


Hildemar é o sambista Monarco da Portela, apelido que ganhou na infância em Nova Iguaçu. Aos 73 anos, ele é um dos compositores mais respeitados do chamado samba de morro, batida tocada pelas escolas que desfilam no Sambódromo. De sua caneta já saíram sucessos cantados por Martinho da Vila (”Tudo Menos Amor”), Clara Nunes (”Rancho da Primavera”), Paulinho da Viola (”Passado de Glória”) e muitos outros.

Sua memória rendeu a Marisa Monte o sucesso “Meu Canário”, de Jaime Silva, gravado no CD Universo ao Meu Redor. “Fui na casa dela, lembrei que o Jaime tinha feito essa música e cantei.” Monarco gosta mesmo é de cantar. Assim, a entrevista que você vai ler a seguir foi toda musicada - para cada história, uma canção.

Como você conheceu o Cartola?
Ele era meu ídolo. Um dia, ele foi na Portela com Carlos Cachaça e eu fiquei de longe admirando. Tempos depois, nos encontramos no Zicartola, bar que ele abriu com a Zica, na rua da Carioca. Ele comandava a roda de samba. Um belo dia, fui lá e quiseram me barrar na porta. Alguém me viu e foi falar com Cartola. Ele veio e perguntou: “Quem é o Monarco?” Eu disse: “Sou eu”. Então ele me mandou entrar. Fiquei no camarim vendo ele ensaiar. Daí pra frente, ficamos amigos. Eu ia de vez em quando procurar ele e o Carlos Cachaça na Mangueira. Fiquei mais próximo do Carlos, pois o Cartola se mudou pra Jacarepaguá. Na Mangueira, ficávamos papeando, eu ouvia as histórias e aprendia as lições do menestrel.

O Candeia falava que o negro era marginalizado, não importava o que fizesse. Você concorda?
Ele cantava: “O crioulo do morro está no miserê. Vai procurar trabalho, não encontra, vai jogar baralho”. Mas é verdade. O Candeia morreu batendo nessa tecla. O samba do morro continua marginalizado. Não é mais como antigamente, claro, mas sempre derrubam a gente. Dizem que nosso samba não é comercial, não vende, só se faz em barracão. Eles dão uma colherzinha de chá no Carnaval. Mas passa o Carnaval, esquecem a rapaziada do morro. A gente nem liga pra isso. Eu tenho samba que todo mundo canta e que nunca tocou no rádio.

História - A malandragem ainda faz parte do samba?
Monarco - Ah, não. Olha, para mulher não tem mais malandro, não. Tem que tratar a mulher bem. Eu já perdi uma grande mulher em minha vida por causa disso, por não conservar. Hoje tenho minha mulher e conservo com o maior carinho - a Olinda, minha pretinha de fé. Eu falo pretinha, mas ela é mulatinha. O malandro, minha filha, se aposentou, perdeu a viagem.
Vinícius de Moraes chegou a brincar uma vez, dizendo: “O que seria dos compositores sem a dor-de-cotovelo, as desilusões amorosas?” É assim mesmo?
Às vezes vejo alguém sofrendo e transporto para mim. E faço como se estivesse acontecendo comigo. Se eu for esperar brigar com a minha mulher para fazer música, estou ferrado… Eu tenho um amigo que foi largado pela mulher. Ele vivia triste, chateado. Eu o levava pro pagode, pra festa, mas não adiantava. Chegava lá, ele ficava jururu. Aí eu fiz algo assim (canta): “Já não vou mais às festas para me divertir, já não sei mais cantar nem sorrir. Os amigos do peito estão preocupados com meu padecer. Quem ontem esbanjava alegria hoje não sente prazer. Ela foi embora sem olhar para trás, é sinal que não volta mais”. O Zeca (Pagodinho) botou mais um pedacinho nessa música. O Ratinho (Alcino Ferreira, compositor) apareceu e botou outro.

Como vem a inspiração?
Do nada. Sem marcar hora. Não sei sentar para fazer uma música. Às vezes passo até um ano sem fazer nada. E, no estalo de um segundo, faço um samba. Tem que fazer direito e deixar fluir espontaneamente. Pode ser no ônibus, caminhando, não importa. Olha, eu não sabia de uma coisa: caminhar de manhã cedo me dá inspiração. Já fiz muita música andando. Sabe, eu faço caminhada porque o médico mandou.


E a cervejinha, o médico deixa?
Ah, mas não bebo mais. Há 30 anos. Já bebi minha cota. Bebi bem. Parei porque fiquei doente, estive internado, com tuberculose. Quando saí do hospital, conversei com o médico sobre minha cervejinha. Ele disse: “Bebe, mas bebe pouco”. Daí eu falei: “Não sei beber pouco”. Então, resolvi parar. Agora meu fígado está tão feliz… (risos).


Tem samba sem cervejinha?
Cartola bebia muito, mas acho que Noel bebia mais. Da turma toda, o Carlos Cachaça era o rei, por isso ganhou esse nome. O Noel ia sempre pro Buraco Quente (uma comunidade do Rio) procurar o Cartola. Chegava lá e enfiava o pé na jaca. Já o Cartola tomava conhaque. Várias vezes bebi com ele nas madrugadas. Ele dizia: “Vamos tomar um conhaque antes de ir pra casa”.


Como você conheceu o Cartola?
Ele era meu ídolo. Um dia, ele foi na Portela com Carlos Cachaça e eu fiquei de longe admirando. Tempos depois, nos encontramos no Zicartola, bar que ele abriu com a Zica, na rua da Carioca. Ele comandava a roda de samba. Um belo dia, fui lá e quiseram me barrar na porta. Alguém me viu e foi falar com Cartola. Ele veio e perguntou: “Quem é o Monarco?” Eu disse: “Sou eu”. Então ele me mandou entrar. Fiquei no camarim vendo ele ensaiar. Daí pra frente, ficamos amigos. Eu ia de vez em quando procurar ele e o Carlos Cachaça na Mangueira. Fiquei mais próximo do Carlos, pois o Cartola se mudou pra Jacarepaguá. Na Mangueira, ficávamos papeando, eu ouvia as histórias e aprendia as lições do menestrel.


Você se lembra de algum episódio?
São tantos! O Cachaça contava coisas engraçadas… Que o Cartola gostava de mulher gorda (risos). Outra vez, Cartola disse a ele: “Você tem que me batizar”. O Carlos: “Ué, tu já é batizado, rapá”. Ele: “Dá um jeito, então me crisma”. Então, o padre crismou o Cartola. Ele estava “pesado”, sabe, sendo injustiçado pela cultura do país. Chegou a lavar carro em Ipanema, imagine. Só foi descoberto pelo (jornalista) Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Um homem cheio de sucesso, parceiro de Noel Rosa, lavando carro para sobreviver, vê se pode.


Isso já aconteceu com você?
Já. Eu guardei carro no estacionamento do Jornal do Brasil, nos anos 70. Antes, eu trabalhava no mercado de peixe, quando a maré estava brava. Aí um amigo arrumou para trabalhar no Jornal do Brasil. Ali era uma beleza. Estacionava o carro de todo mundo, dos jornalistas mais famosos. Foi nessa época que Martinho gravou uma música minha e comecei a fazer sucesso. Ele foi uma vez num ensaio da Portela, escutou um samba meu e gravou. Isso passou a ser meu cartão de visitas, outros artistas começaram a me pedir música, como Clara Nunes, João Nogueira. Então saí do jornal para fazer samba - acho que faço samba com mais perfeição, né? (risos)


Antes disso você também tinha trabalhado na ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Foi aí que você conheceu Villa-Lobos?
Ah, eu era menor de idade nessa época. Heitor Villa-Lobos jogava bilhar francês lá. E eu escovava as mesas. Quando eram 5 horas, 5 e meia, lá vinha ele. Eu escovava bem a mesa, passava flanela em volta e deixava prontinha. Ele chegava fumando aquele charuto que várias vezes eu fui comprar pra ele. Uma vez, eu cantei um samba do Manacéia (sambista da Portela) e o Nássara (cartunista e compositor) chamou ele para ouvir. O Nássara não jogava, ficava na galera assistindo. Eu cantei: “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil…” O Nássara disse: “Olha, esse samba é da Portela”. Villa-Lobos passou o giz no taco, ouviu e não disse nada, continuou a jogar.


Você sempre foi da Portela?
Desde menino. Nasci em Cavalcanti e me mudei para Nova Iguaçu. Lá eu já ouvia sambas da Aracy de Almeida, daquelas cantoras antigas. Ouvia Noel. Então, minha mãe se separou do meu pai e foi morar em Oswaldo Cruz - olha como o destino foi bom! Quando eu vi a placa com o nome, pensei: “É o lugar do samba do Noel Rosa!” (o bairro é citado na canção “Palpite Infeliz”, de 1935). Dali, já pulei para a Portela. Escutei falar o nome do Paulo da Portela (sambista que ajudou a fundar a escola) no rádio e fui descobrir onde ele morava. Como não tinha dinheiro para comprar fantasia, no começo, desfilava segurando a corda lateral. Fazia calo na mão, mas não largava. Depois, fui trabalhar, juntei dinheiro e saí numa ala, de terno e tudo. Isso foi em 1951. Em 1952, fiz meu primeiro samba e passei para a ala dos compositores. Tornei-me companheiro daqueles bambas que eu idolatrava. Eu e o Candeia. Acho que o homem lá de cima disse: “Não vou te dar dinheiro, mas vou te dar inspiração” (risos).


É verdade que há rivalidade entre Mangueira e Portela?
A Mangueira teve uma encrenca com a Portela, na década de 30. Logo depois, tudo foi contornado, principalmente por meio da amizade de Paulo da Portela com Cartola. Hoje as escolas são companheiras. Dizem que quando a Portela encostava na praça Onze, o Cartola falava: “Deixa eu ver o que o Paulo trouxe”. Ele vinha ver como estava, preocupava-se com a escola. E vice-versa. Eles faziam samba juntos. A amizade dos dois significava a amizade entre Mangueira e Portela. Tenho vários sambas que enaltecem a amizade das duas escolas (canta): “Por isso que Portela e Mangueira são as grandes pioneiras das escolas do Carnaval…” Este chama-se “Velhas Companheiras” e fala dessa amizade.


Você costuma dizer que seu samba é chamado de samba de terreiro, diferente do samba de asfalto. Como eles se diferem?
O de terreiro é aquele de escola de samba. É o que eu aprendi, o que faço até hoje. Nosso samba não tem agrotóxico, não… (risos). A turma do Estácio começou, a Portela e a Mangueira foram lá e continuaram. E inspiraram vários compositores do asfalto também, como Ary Barroso, Erivelton Martins, Ataulfo Alves, Noel.
O Candeia falava que o negro era marginalizado, não importava o que fizesse. Você concorda?
Ele cantava: “O crioulo do morro está no miserê. Vai procurar trabalho, não encontra, vai jogar baralho”. Mas é verdade. O Candeia morreu batendo nessa tecla. O samba do morro continua marginalizado. Não é mais como antigamente, claro, mas sempre derrubam a gente. Dizem que nosso samba não é comercial, não vende, só se faz em barracão. Eles dão uma colherzinha de chá no Carnaval. Mas passa o Carnaval, esquecem a rapaziada do morro. A gente nem liga pra isso. Eu tenho samba que todo mundo canta e que nunca tocou no rádio.


Como ficaram as escolas de samba depois que o jogo do bicho passou a ter uma participação mais retraída?
O pessoal da contravenção gosta do samba, foi criado perto. Veio para ajudar, organizar. A liga hoje é organizada. A Portela tem 5 mil pessoas e tinha 200. As escolas cresceram. Eles são muito bem-vindos ao nosso reduto. Não saíram, estão todos ali.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vozes da Informação - uma amostra


Vozes da Informação é um novo programa do Canal Brasil. Aliás, não posso deixar de comentar e parabenizar o sucesso do canal, graças às atitutes corajosas de jovens roteiristas que chegaram à casa.

O que antes era apenas um canal em que se passava filmes brasileiros esquecidos, agora abre as portas para artistas e jovens diretores desenvolverem ideias bem interessantes e com baixo orçamento. Alguns exemplos de programas que confirmam o que digo: O som do Vinil, do baterista do Titãs Charles Gavin; Larica Total, engraçadíssimo, sobre culinária a baixo custo para homens solteiros; O Estranho Mundo de Zé do Caixão, talk-show do cineasta José Mojica Marins. E os que ainda irão estrear, como uma mesa redonda de artistas com degustação de águas, e também um reality show de celebridades bem na hora em que vão dormir (acho que se chama Celebrity sono TV).

Neste post, um programa bem menos ousado que esses que acabo de citar, mas com nível de conhecimento elevado. Eis o perfil do programa:
"Os bastidores da imprensa ganham as telas do programa, um bate-papo sem censura com os mais renomados jornalistas brasileiros. Em pauta, histórias, curiosidades e os desafios de uma profissão que, matéria-a-matéria, precisa se reinventar todos os dias." - do site do Canal Brasil. A direção é de Jorge Brennand Jr.

Confira dois depoimentos de consagrados jornalistas para o Vozes:

Tárik de Souza
O jornalista fala sobre as ditaduras de ontem e hoje, a falta de melhora da imprensa nos últimos tempos e a relação entre crítica musical e venda de álbuns, entre outros temas.



Sérgio Cabral
O jornalista comenta a exigência de diploma para exercer a profissão, a atuação como crítico musical e a tradicional prática do "jabá".

Entrevista com o dono do Estante

A revista Língua Portuguesa (Editora Segmento) #53, do mês passado, fez uma entrevista com o criador do maior portal de sebos do Brasil, André Garcia, de 31 anos.


Segue:


A cultura dos sebos

Criador do portal Estante Virtual diz que os alfarrábios superaram as livrarias como estimuladores de leitura no Brasil e viraram reserva cultural da memória literária brasileira

Luiz Costa Pereira Junior


O administrador André Garcia tinha 26 anos quando abandonou uma promissora carreira na área de inteligência de mercado em operadoras de celular, no Rio. Estava farto do mundo corporativo. Na dúvida do rumo a seguir, buscou a vida acadêmica. Mas, ao procurar livros para um mestrado, notou uma lacuna no mercado que mudaria sua trajetória.

Garcia não achava os títulos que queria em bibliotecas e livrarias, perdia-se nos sebos e na falta de oferta de usados na internet. Veio então o estalo. Em um ano, lançou o Estante Virtual, portal de compra de livros usados, que completa quatro anos com 1.670 sebos, com 22 milhões de obras reunidas.

Aos 31 anos, Garcia comanda um negócio que vende 5 mil livros diários, em 300 mil buscas (12 buscas por segundo em horário de pico). Para ele, os sebos devem ser valorizados como agentes de democratização da leitura. "Ela tem de estimular a imaginação e a reflexão.

Qualquer leitura não é leitura", diz com a autoridade conquistada pelo sucesso da iniciativa inédita de intermediação. Garcia diz ser um erro achar que só à escola cabe estimular a leitura. É desafio do país, afirma, fazê-la vista como prazer. O Estante Virtual quer provar que até uma iniciativa de negócio pode fazer a sua parte.

O brasileiro não gosta de ler ou não compra livros por achar muito caro?Os dois. Há muita gente que poderia gostar e não gosta, mas há ainda mais gente disponível à leitura se o livro fosse barato. Para quem não gosta de ler, há a razão educacional: a escola ensina a não gostar, usa uma metodologia que tem êxito inverso. Temos uma base pedagógica em que ler é obrigatório e a biblioteca é vista como lugar de castigo. Mas leitura é subjetividade, é ver o que agrada à sensibilidade e se ajusta à sua forma de ser, ao seu momento. A escola nunca me deu esse espaço e duvido que, salvo exceção, garanta isso a muito aluno. Para os que driblam a escola e aprendem a gostar de ler, há um preço alto a ser encarado. Se você considerar só a lista dos dez mais vendidos, a média é de R$ 43 o exemplar. Lê esses livros quem tem mais recurso.

Muitos acham que best-seller estimula a leitura.Tudo bem, o cara lê 800 páginas de Harry Potter. Mas esse tipo de livro leva mesmo a outra leitura que não seja a mais coisa parecida com Harry Potter? Outro dia, um membro da Câmara Brasileira do Livro disse num evento que se o brasileiro ler bula de remédio, ou revista de fofoca, já está ótimo. Na minha opinião, isso é só tecnicamente leitura. A leitura tem de estimular a imaginação e a reflexão. Qualquer leitura não é leitura.

O livro pode virar fator de exclusão social?Sem estímulo à escolha, sim. Há essa segmentação, em que uma minoria de livros é bem mais apresentada que todo o resto. A leitura termina aberta a um universo restrito de não mais que uns vinte livros. Uma derrota para a cultura. As pessoas leem só isso? O.K., melhor que não ler. Mas é um quadro de pauperização preocupante. Não basta democratizar a leitura. É preciso democratizar os autores de qualidade.

Daí o papel dos sebos...
Drummond tem uma crônica, O Sebo, em que diz que o sebo é o verdadeiro templo da democracia literária. As livrarias se concentram nos 20% de produtos responsáveis por 80% das vendas. Fazem isso não porque são "malvadas", mas por não haver espaço para tudo. Não há como dar vazão a 1.500 títulos novos todo mês, 52 por dia, fora as reedições. Já o sebo virou uma reserva cultural. Nele, há os de agora, os de antes, os fora de catálogo. Estamos falando da história editorial do país, não só dos livros do momento.

Muitos evitam sebos pela poeira e desordem, não é?Quem vê o sebo como o lugar de obras raras ou esgotadas deixa de usufruir o que ele tem a oferecer, pois trabalha com livro novo, seminovo ou em edição. À medida que as livrarias priorizaram os mais vendidos, os sebos viram que a demanda por eles cresceu. Boa parte se modernizou, está organizada. Os sebos com bagunça, obras empilhadas, empoeiradas, hoje são minoria.

Mas esse "preconceito" não impediu o avanço...
Se livro não fosse tão caro, sebos não teriam o papel que têm no Brasil. Em Portugal, os alfarrábios são só para obras raras e esgotadas, mesmo. Não se vai a um sebo português para comprar um novo Lobo Antunes ou Saramago, pois a loja não terá. Terá o exemplar raro, o autografado, a edição há muito esgotada. Aqui não, o sebo tem tudo, e o que a livraria de novos não tem mais, pois se concentrou nos mais vendidos e nos lançamentos recentes.

Qual o tamanho real desse mercado?
O Brasil tem hoje 1.800 livrarias em meio a 2.300 pontos de venda de livros. A estimativa de sebos é de 2 mil pontos de livros usados no país, 1.670 dos quais estão no Estante Virtual. Deste número, metade é de lojas de rua e a outra metade, de virtuais.

Quem toca esses virtuais?
Em geral, ex-professores, intelectuais aposentados, com muitos livros em casa, que ampliam o acervo e vendem. A gênese desse mercado ocorreu conosco. Antes, ia-se ao Mercado Livre ou montavam um blog, mas sem movimentação, pois ficavam perdidos na rede.
E aí surgiu o Estante.

E aí surgiu o Estante.
Atuava na área de inteligência em operadoras de celular, mapeando mercados, mas cansei da hipercompetição, dos valores focados em maximizar lucros, das relações pessoais pouco saudáveis nas empresas e de brigar com concorrentes por um produto que era, de fato, igual ao deles. Chutei o balde, queria virar professor e me preparei para um mestrado em Psicologia Social na PUC-SP. Procurei livros para estudar quando veio o estalo.
Criar o lugar dos sebos...

Eu ia a bibliotecas e livrarias, e não achava o que queria. Nos sebos, vi uma forma de busca elementar. Olhava as lombadas, umas com as letras subindo; outras, descendo; mesmo com paciência, não achava. Vi, então, que o sebo era mais um lugar para deixar o livro encontrar você do que encontrar o livro que de antemão se deseja. É lugar de garimpagem, não busca. Fui à internet e só achei uns seis sites de sebos. Todos caros. Aquilo me chamou a atenção. Pelo desperdício de um acervo inalcançável - o cliente não conseguia uma mera busca. Eu me perguntei porque só uma elite de sebos estava na rede. Mas sabia a resposta: montar um site com acervo e sistema de busca não é barato, uns R$ 5 mil à época. Minha ideia era resolver a procura e criar uma vitrine para sebos sem visibilidade.

O início foi difícil?No um ano que levou para preparar o site, mapeei o mercado. No final de 2005, quando lancei o Estante, contávamos com 68 sebos. Hoje temos 600 mil clientes a quem vendemos 5 mil livros ao dia. É mais do que as lojas de rua da Travessa, rede tradicional do Rio, ou do serviço on-line da Cultura, de São Paulo. Não vendemos o livro diretamente, fazemos a intermediação entre o livreiro e o comprador. A cada mil livros on-line, cada sebo fatura em média R$ 600 mensais.

Que livro é procurado?
Literatura estrangeira e brasileira, uns 20% e uns 15% da procura cada, o resto é pulverizado. O livro mais vendido é Vidas Secas, do Graciliano Ramos, que não chega a 900 cópias vendidos. É pouco, claro. No Estante, a venda é pulverizada, não há a discrepância das livrarias, em que um livro dispara milhares de cópias e o 50º mais vendido não passa de dezenas de exemplares. Nos sebos, não. O consumo é bem mais equilibrado. Considero isso uma vitória deles, que têm acervos diversificados e servem a todo gosto, não a um ou outro autor, editora ou tipo de leitura.

Tecnologias como kindle tornarão o sebo obsoleto?

Se livro impresso é caro, imagine depender de um intermediário de leitura que custa bem mais. Sebos atuam em nicho inverso, o de pessoas que querem uma leitura mais barata.

Para além da venda, a internet estimula a leitura?
Autores que não conseguem editora escoam sua produção em blogs. Nessa hora, a internet ajuda a ler e a criar. Mas o gênero mais lido da rede é o jornalístico, leitura informacional, utilitária, não uma ordem de leitura, digamos, mais preciosa. A internet atrapalha, de fato, quando a ênfase da leitura é nos simulacros de interação, como orkut, MSN, Twitter. Eu me pergunto se essas são reais formas de interação, se as comunidades interagem como comunidade. No Orkut, são muito usadas como decalque para a pessoa inserir em seu perfil. Não há convivência genuína.

Não é julgamento severo?
Não podemos apenas rejeitar essa interação, mas não se deve só endossá-la. Pois podemos virar a civilização dos simulacros de interação e dos protótipos de leitura. A escola precisa mostrar que ler dá prazer e nem tudo é interação genuína. Dizem que, como os tempos são dinâmicos, as pessoas não param para ler, daí ser preciso coisas mais dinâmicas, com jogos e tal. É desistir cedo demais. É preciso opor alguma resistência a essa temporalidade imediata.

O problema é a educação.
Não é só a educação. Há um grau de precarização da vida contemporânea, da mente ocupada o tempo inteiro, o dia todo tomado, sem tantas zonas de pausa, tudo se junta para o sujeito chegar em casa e não ter energia para ler. Exercitar a imaginação dá trabalho. O sistema de vida que levamos não facilita. A leitura está condicionada a fatores que talvez não consigamos de fato mudar. Não será só a escola a ser obstáculo, mas mudá-la é um começo.

Como estimular a leitura, nesse contexto?
De cara, a escolha do que ler, o processo da leitura, deve dizer algo ao leitor. Damos um sinal errado ao aluno ou filho quando o fazemos ler só para fazer prova. Quando perguntamos o que o personagem falou ou fez, só para saber se houve leitura por parte do garoto. Ler não é isso. Tem de haver prazer envolvido. Devemos nos opor a certos dogmas intelectuais, de que os clássicos devem ser venerados sem restrições, os livros precisam ser lidos até o final etc. Por mim, começaria as primeiras séries proibindo provas sobre não didáticos. Se o garoto não ler, pior pra ele. Mas não se deve puni-lo. Senão, começa a odiar. A ver o tempo na biblioteca como castigo. Isso não forma leitores, só os afasta.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Rio: Terra arrasada

A história pluviométrica da cidade do Rio de Janeiro nunca registrou algo parecido como essas chuvas dos últimos dias. Para se ter uma ideia, no mês de março do ano passado choveu 110 mm; a deste mesmo mês foi de 320 mm.

A tempestade recorde isolou áreas da capital, deixando diversos moradores ilhados em: escritórios, carros e ônibus, pontos de ônibus, escolas, comércios e demais lugares onde as pessoas estavam. Faltou luz em 13 bairros. 2.510 pessoas ficaram desalojadas. 120 pessoas já morreram - a maioria dessas ocupavam encostas com risco de desmoronar - até a conclusão deste post.

A área mais castigada foi decerto o Morro dos Prazeres, com 14 mortes. Mas outras comunidades e bairros como o Morro dos Macacos, Taquara São Cristóvão, Ladeira dos Guararapes, Borel, Olaria, São Gonçalo e Niterói também tiveram tragédias com feridos, mortes e muitos desabrigados.

Em Mangueira, a quadra da escola virou abrigo para os que perderam tudo. Repórteres do Jornal da Globo mostraram o pessoal da escola fazendo dos camarotes pequenas salas para guardar mantimentos, colchões e roupas que chegam de doação. Veja reportagem sobre e depois a coluna do Ruy Castro na Folha de hoje.

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RUY CASTRO

Dívida cruel

RIO DE JANEIRO - "O que teremos de pagar por tanta beleza?", perguntou o poeta Ezra Pound a respeito de Veneza. Pound, que morou e morreu por lá, sabia a resposta: há "acqua alta", a água que sobe um pouco todo ano, há séculos, e, um dia -até 2100, dizem os apocalípticos-, acabará por submergir a cidade. Nesse caso, Veneza estará pagando pela ousadia de seus arquitetos de construir uma cidade que, na sua imodéstia, podia competir com a inspiração divina.

Mas, no caso do Rio, a beleza se originou dessa própria inspiração dita divina. Ou terão sido os homens os responsáveis pelo recorte da baía, o gigante de pedra, o traçado das areias, a onipresença do verde? E, sendo assim, por que teríamos de pagar? A não ser que fosse por isso mesmo -porque, embora não soubéssemos, previa-se uma espécie de pedágio pelos séculos em que tivemos o Rio para nós.

Pode ser também que nosso crime seja o de não termos cuidado dessa beleza como deveríamos. Fomos soberbos com suas matas e imprevidentes com suas encostas, impermeabilizamos seu chão e aprisionamos suas águas. Por que o Rio, que, nos séculos 17 e 18, tomou brejos, pântanos e alagadiços, não consegue conter a água que cai do céu? Mas, também nesse caso, por que a culpa acumulada durante várias gerações teria de ser expiada justamente na nossa vez?

Há cem anos se sabe que inundações são inexoráveis na zona do Maracanã, na lagoa Rodrigo de Freitas, no Jardim Botânico. Em jovem, eu próprio já atravessei a praça da Bandeira e os largos da Lapa e do Machado com água pela cintura. E a cidade, que começou a subir os morros em 1565, não se preparou para quando os morros resolvessem deslizar em direção à ela.

Apenas no último meio século, tivemos 1966, 1967, 1988, 1996 e, agora, 2010. Chega de pagar.


quinta-feira, 25 de março de 2010

Crítica/"Clarice,"

Capa da mais nova biografia da escritora Clarice Lispector. Lançada pela Cosac Naify.

Não acabou de sair do forno, mas é um lançamento relativamente recente - do final do ano passado. Eu ainda não li essa biografia. Que (como verão) para o Ruy é, na verdade, um ensaio biográfico.


Obra sobre Lispector não é biografia, mas ensaio biográfico
Benjamin Moser se afasta da narrativa factual e faz radiografia da alma da autora

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

"Clarice,", o livro do americano Benjamin Moser sobre Clarice Lispector (1920-1977), está sendo apresentado por sua editora como "uma biografia como você nunca viu". E não viu mesmo porque, tecnicamente, "Clarice," não é uma biografia.

Ou, pelo menos, não se enquadra nos parâmetros que poderiam defini-la como uma história ou descrição da vida de um personagem, tanto nas suas grandes linhas como nos detalhes mais significantes, contra um pano de fundo de cenário e época. Esse personagem não é um ectoplasma, mas um ser ativo, material, que faz coisas concretas, em casa, na rua ou no escritório, e vive cercado de pessoas tão ativas e materiais quanto ele. Ao biógrafo compete ouvir o máximo de fontes para levantar os fatos de sua vida e dispô-los numa narrativa lógica, abrangente e o mais próximo possível da verdade.

No decorrer das 648 páginas do livro de Moser, Clarice Lispector não dá um beijo, não troca uma lâmpada, não frita um ovo. Às vezes, escreve um livro. É como se sua vida fosse toda voltada para dentro, e o biógrafo só se dispusesse a enxergá-la por meio de uma radiografia. E, no entanto, sabemos que a vida de Clarice foi cheia de peripécias.

Apenas pelo fato de ter nascido de uma família judia, na Ucrânia, logo depois da Primeira Guerra, Clarice já estaria condenada a elas. Sua mãe foi estuprada pelos russos num pogrom; o pai, arruinado; o avô, assassinado. Fugindo à miséria e a mais pogroms, os Lispector vieram dar no Brasil, onde já tinham parentes, em 1922, trazendo as três filhas (Clarice, a caçula, com 1 ano e meio) -primeiro, Maceió; depois, Recife; finalmente, o Rio.

Começou a escrever muito cedo, casou-se com um diplomata, passou 15 anos no exterior e, separada do marido, voltou com os dois filhos para o Rio, onde, a duras penas, consolidou sua obra literária. Siderou um sem número de homens pela inteligência e pela beleza, mas teve uma vida amorosa das mais pobres.

Escapou de um incêndio em seu apartamento, em que só seu rosto foi poupado das queimaduras. No fim, reduzida a uma acompanhante, morreu de câncer, aos 57 anos. Esses fatos estão no livro vagos, dispersos, sem paixão, como amostras de sangue numa lâmina de laboratório.
"Fatos e pormenores me aborrecem", Clarice costumava dizer. Coerente com a biografada, Moser afastou qualquer possibilidade de narrativa física, factual na verdade, a espinha de qualquer biografia. É uma opção respeitável.

Pena que, com isso, o leitor às vezes se perca no livro, sem saber onde ou quando está se passando a ação, a pouca ação que ele se permite descrever.

Como o autor não se obriga a narrar os fatos, o leitor é surpreendido com informações que parecem cair das nuvens.

De repente, por exemplo, Clarice se vê direto no nono mês de gravidez. Muito depois, sem aviso prévio, está se separando do marido. E, a folhas tantas, de supetão, descobrimos que tem um longo histórico psiquiátrico e é, há anos, pesada dependente de soníferos e antidepressivos.

O marido, por sinal, é uma sombra -não se consegue visualizá-lo, nem entender seu papel na vida de Clarice. Quanto aos comprimidos de venda "controlada", que ela tomava às mancheias, em nenhum momento Moser suspeita que pudessem ser a causa das ansiedades, angústias e insônias que, no fim, tornaram Clarice quase insuportável para os amigos e para si mesma. Nem poderia suspeitar: seu "approach" ao íntimo do personagem é decididamente psicanalítico -e, se este livro é uma biografia, sê-lo-á apenas da alma da escritora.

Na verdade, "Clarice," pertence a outro gênero, paralelo à biografia e perfeitamente válido: o ensaio biográfico -e como tal deve ser lido. No ensaio biográfico, o autor tem liberdade para comentar a trajetória do biografado, explorar sua cabeça, ignorar o que lhe parece supérfluo e, sendo o personagem um escritor, valer-se de citações do próprio e permitir-se toda sorte de interpretações, inferências e aproximações.

É o que Moser faz, quase sempre esbanjando inteligência. A identidade judaica de Clarice; sua consciência de ser uma esfinge, um "enigma"; sua natureza animal (que ela tanto prezava); a busca de um Deus "neutro", inumano, e do significado oculto das palavras -grandes temas claricianos que Moser analisa com brilho, dialogando a cada passo com trechos dos romances, contos e crônicas da escritora-, tudo serve para iluminar a obra de Clarice Lispector. E é isso que separa os ensaios biográficos das biografias: aqueles iluminam a obra; estas, a vida.

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CLARICE,

Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 79 (648 págs.)
Avaliação: bom

quinta-feira, 18 de março de 2010

Fotógrafa inglesa é coisa nossa

Nascida na Inglaterra, em 1931, a fotógrafa Maureen Bisilliat veio para o Brasil com 21 anos, quando se casou com um negociante de algodão. Aqui fixou suas raízes, apaixonou-se por nossa cultura e, então, resolveu naturalizar-se brasileira.

Como fotojornalista, contribuiu em reportagens da revista Realidade (hoje extinta) e Quatro rodas, ambas da Editora Abril. Com formação em pintura, Maureen faz belo uso da luz e é rigorosa na composição das cenas.
Guimarães Rosa chamava-a de "irlandesa cigana", devido ao estilo hippie de se vestir, com saias e cabelos longos. Aliás, foi com a ajuda do poliglota que Maureen localizou e fotografou personagens das veredas de Minas Gerais. Como se não bastasse ter conhecido um grande literato, ela também conviveu com outro: Jorge Amado. Após uma inspiradora temporada na casa do baiano, fez ensaios do litoral e dos pescadores da região.
Algumas fotos da fotógrafa, que está com galeria no SESI da Paulista:

O jagunço Manuelzão, que inspirou o personagem de Guimarães Rosa.

Caranguejeiras. 1968.

Foi capa da Revista da Cultura.


Índio Xingu e um dos irmãos Villas-Boas.
Desde 2003 o acervo de mais de 16.000 imagens de Maureen Bisilliat pertence ao Instituto Moreira Salles.
Para vê-lo, clique aqui.
A Galeria de Arte do Sesi está com uma retrospectiva dela em cartaz desde a semana retrasada aqui em São Paulo.
Serviço:
Local - Galeria de Arte do SESI - Centro Cultural Fiesp -Ruth Cardoso. Av. Paulista 1313. Metrô Brigadeiro/Trianon-Masp.
Data - de 2 de março a 4 de julho de 2010.
Horário - Seg. das 11h às 20h.
Ter. a Sáb. das 10h às 20h.
Dom. das 10h às 19h.
Entrada Franca
Indicação Livre
Telefone - 3146-7405

quarta-feira, 17 de março de 2010

É pela coisa ou pelo nome da coisa?

Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso - ufa!
Ou, simplesmente, Picasso.

Garçon à la Pipe. 1905. Fase rosa do pintor espanhol, considerada mais 'alegre' com predomínios das cores rosa e laranja.

Este é um quadro dele. Em 2004 pagaram (quem foi o maluco eu não sei; se souber, por favor, me diga) a estratosférica quantia de US$ 100 milhões por ele - foi o primeiro quadro a ultrapassar a casa das dezenas de milhões.
Fala sério: um sujeito sentado, trajando algo semelhante a um macacão azul, com uma coroa de rosas, e segurando um cachimbo sem charme nenhum, vale tanto assim???

segunda-feira, 15 de março de 2010

Estadão de cara nova

Primeira página de hoje, segunda-feira 15 de março de 2010.
O jornal O Estado de São Paulo está de cara nova! Desde sábado ele circula por todo o país com tipografia, cromagem e novos cadernos para conquistar mais leitores e também tornar a leitura mais confortável aos leitores veteranos do jornal - que tem um ranso conservador, como o jornal, que tem mais de 130 anos de existência.

Desde 2004 não passava por mudanças - já estava na hora. A mudança não ficou só na versão impressa: o portal estadão (http://www.estadão.com.br/) também foi modificado; agora encontramos mais facilmente o que estamos procurando; a TV Estadão agora passará a ter mais conteúdo.

As mudanças mais significativas do jornal são as seguintes: o ex-libris (que é um homem em cima de um cavalo com uma corneta anunciando que o jornal chegou) ficou mais moderno; a primeira página deixa de ter seis colunas e passa a ter cinco, o que prioriza muito mais a importância do que está ali; novo cardeno de cultura no sábado, o Sabático, que trata de literatura e ensaios; assim o caderno 2 de sábado tratará somente de música; o antigo Cultura de domingo virou o Caderno 2 Domingo; um cardeno sobre meio ambiente, chamado Planeta; uma nova seção chamada Visão Global, na qual terá somente artigos de especialistas estrangeiros sobre determinado tema; Webesfera será uma outra seção em que nela o leitor encontrará o melhor da internet; o caderno Metrópole será escrito sob o princípio de "ajudar o leitor a sobreviver nessa imensa cidade de São Paulo".

Essas são as mudanças mais importantes. Se quiser saber a opinião de toda a equipe do Estadão sobre o Planejamento 2010 do grupo, veja o vídeo aqui.

Como leitor diário do periódico, eu aprovei a mudança!