segunda-feira, 30 de maio de 2016

Suzane Von Richthofen jamais se reintegrará à sociedade, porque esta não deseja



Caso Suzane Von Richthofen mostra necessidade de discutir execução penal

terça-feira, 24 de maio de 2016

Foro privilegiado deve acabar ou ser limitado aos chefes dos Poderes

23 de maio de 2016, 14h54

Por 



I. Olhando para trás: as causas mais profundas da corrupção
Três disfunções atávicas e crônicas acompanham a formação social brasileira. Elas se encontram na origem de muitas de nossas vicissitudes. São difíceis de combater porque foram naturalizadas e são praticadas muitas vezes de forma inconsciente.
II.1. Patrimonialismo
O patrimonialismo vem da nossa formação ibérica, na qual não se separava adequadamente a Fazenda do rei da Fazenda do reino, num ambiente em que dinheiros e proveitos de um e outro se misturavam. O patrimonialismo consiste na renitente apropriação da esfera pública pelos interesses privados.
Exemplo 1: o nepotismo. Desde sempre o país considerou normal a indicação de parentes para cargos públicos de livre-nomeação, até que o Supremo Tribunal Federal declarou a prática inconstitucional, em fevereiro de 2006. Detalhe significativo: um Tribunal de Justiça de importante Estado da federação se habilitou como amicus curiae para defender o direito de nomear a parentada.
Exemplo 2: a Constituição brasileira de 1988 é provavelmente a única Constituição no mundo que precisou de um dispositivo específico para explicitar que os governantes não podem utilizar dinheiro público para fazer promoção pessoal (artigo 37, parágrafo 1º).
II.2. Oficialismo
A segunda disfunção é o oficialismo. Esta é a característica que faz depender do Estado, isto é, de sua bênção, ingerência e financiamento, todo e qualquer projeto relevante, econômico, social ou político.  Os subprodutos inevitáveis desse modelo são todos muito ruins: burocracia, troca de favores e corrupção pura e simples.
Exemplo 1: o país tem 23.500 cargos em comissão.
Exemplo 2:  as desonerações sem transparência e os empréstimos favorecidos aos amigos.
Exemplo 3: temos um capitalismo que não gosta nem de risco nem de competição. Vive de financiamento público, reserva de mercado e cartelização. Ou seja: não é capitalismo, mas socialismo para ricos.
II.3. Inigualitarismo
Somos herdeiros de uma sociedade escravocrata – fomos o último país do continente a abolir a escravidão –, acostumada a distinguir entre senhores e servos, brancos e negros, ricos e pobres. Fomos criados em uma cultura em que a origem social está acima do mérito ou da virtude, e na qual existem superiores e inferiores.
Exemplo: é mais fácil punir um menino de 18 anos com 100 gramas de maconha do que alguém que tenha cometido uma fraude de 10 milhões. A Justiça, entre nós, é mansa com os ricos e dura com os pobres.
Em algum lugar do futuro, vamos vencer estas três disfunções com consciência crítica e idealismo. Nada é impossível. Em uma geração,  nós derrotamos o autoritarismo e a inflação.
III. Olhando para o presente: as transformações em curso
A corrupção tem causas diversas e profundas. Algumas são associadas às disfunções que narrei no tópico anterior. Outro capítulo importante para a análise da corrupção é o custo das eleições e o financiamento eleitoral. Mas como o nosso tema não é reforma política, vou focar em outro fator de fomento à corrupção, que é a impunidade.
As pessoas na vida tomam decisões levando em conta incentivos e riscos. O baixíssimo risco de punição – na verdade, a certeza da impunidade – sempre funcionou como um incentivo à conduta criminosa de agentes públicos e privados. A superação desse quadro tem exigido mudança de legislação, de atitude e de jurisprudência.
III.1. Mudança na legislação
Ao longo dos anos, lenta mas progressivamente, a legislação foi colocando foco na criminalidade de colarinho branco. Veja-se, ilustrativamente: Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro (Lei 7.492/86); Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária (Lei 8.137/90); Agravamento da pena por Corrupção Ativa e Corrupção Passiva (Lei 10.763/2003); Lei de Lavagem e Ocultação de Bens, Direitos e Valores (Lei 9.613/98, aperfeiçoada pela Lei 12.683/2012).
Embora a possibilidade de colaboração premiada já existisse, de modo incipiente, desde a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e tenha sido reforçada com a Lei da Lavagem referida acima, foi a Lei 12.850/2013 (“Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal”) que veio a detalhá-la melhor. Merece menção, ainda, a  chamada Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que permitiu a responsabilização objetiva de pessoas jurídicas e o chamado acordo de leniência.
III.2. Mudança de atitude
O combate à corrupção envolveu, também, uma mudança de atitude, tanto por parte da sociedade quanto de juízes e tribunais. Nesse sentido, o julgamento da Ação Penal 470 (“mensalão”) foi um marco emblemático: a sociedade demonstrou de forma ativa a sua rejeição a práticas promíscuas entre setor privado e Poder Público, historicamente presentes na vida nacional. E o Supremo Tribunal Federal foi capaz de interpretar este sentimento e quebrar o longo ciclo de aceitação social do inaceitável. Merece crédito, neste processo de mudança de atitude, a atuação do relator do caso, ministro Joaquim Barbosa.
Pois bem: a condenação efetiva de mais de duas dezenas de pessoas, entre empresários, políticos e agentes públicos, por delitos como corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituição financeira etc., produziu um efeito colateral de grande importância. De fato, no escândalo seguinte, as pessoas investigadas se dispuseram a colaborar com a Justiça, em busca das benesses da colaboração premiada (redução de pena em até 2/3, substituição da prisão por medidas restritivas de direitos e perdão judicial). A operação "lava jato", ainda em curso, conduzida no âmbito do Judiciário pelo juiz Sérgio Moro, revelou um esquema de superfaturamentos, propinas e ilícitos diversos cuja profundidade e extensão estarreceram a sociedade brasileira.   
III.3. Mudanças na jurisprudência
O Direito Penal deve ser moderado, mas sério. Na formulação famosa de Cesare Beccaria, é a certeza da punição – não a exacerbação da pena – que previne o crime. Em matéria de criminalidade de colarinho branco, ao lado da pena privativa de liberdade, a pena pecuniária deve ser executada com rigor. Na execução das condenações da AP 470, já sob minha relatoria, o STF endossou duas linhas jurisprudenciais que eu estabeleci, mudando a concepção anterior: (i) para beneficiar-se da progressão de regime prisional é preciso restituir o dinheiro desviado; e (ii) igualmente, para progredir de regime prisional é preciso pagar previamente a multa a que foi condenado. Alguns milhões foram arrecadados dos réus da AP 470.
Mais recentemente, igualmente com meu apoio, o tribunal mudou sua jurisprudência para permitir a execução das decisões condenatórias após o julgamento em segundo grau de jurisdição, fechando a porta pela qual os condenados escapavam ou retardavam indefinidamente o cumprimento da pena, mediante recursos procrastinatórios.
IV. Olhando para frente: é preciso acabar com o foro privilegiado
O foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, é um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país. É preciso acabar com ele ou reservá-lo a um número mínimo de autoridades, como os chefes de Poder. Há três ordens de razões que justificam sua eliminação ou redução drástica:
Razões filosóficas: trata-se de uma reminiscência aristocrática, não republicana, que dá privilégio a alguns, sem um fundamento razoável;
Razões estruturais: Cortes constitucionais, como o STF, não foram concebidas para funcionarem como juízos criminais de 1º grau, nem têm estrutura para isso. O julgamento da AP 470 ocupou o tribunal por um ano e meio, em 69 sessões;
Razões de justiça: o foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque é demorado e permite a manipulação da jurisdição do Tribunal[1].
Alguns dados estatísticos sobre o foro privilegiado[2]:
(i) tramitam no STF, atualmente, 369 inquéritos e 102 ações penais contra parlamentares;
(ii) o prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 617 dias (um juiz de 1º grau recebe, como regra, em menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples)[3]; e
(iii) desde que o STF começou a julgar efetivamente ações penais (a partir da EC 35/2001, que deixou de condicionar ações contra parlamentares à autorização da casa legislativa), já ocorreram 59 casos de prescrição, entre inquéritos e ações penais.
Minha proposta nessa matéria: criar uma vara federal especializada no Distrito Federal, para julgar os casos que hoje desfrutam de foro privilegiado. O juiz titular seria escolhido pelo STF e teria um mandato de quatro anos, ao final dos quais seria automaticamente promovido para o 2º grau. Teria tantos juízes auxiliares quantos necessários, mas seria um único titular para dar unidade aos critérios de decisão. De suas sentenças caberia recurso para o STF ou para o STJ, conforme a autoridade.
V. Conclusão
O enfrentamento da corrupção e da impunidade produzirá uma transformação cultural importante no Brasil: a valorização dos bons em lugar dos espertos. Quem tiver talento para produzir uma inovação relevante capaz de baixar custos vai ser mais importante do que quem conhece a autoridade administrativa que paga qualquer preço, desde que receba vantagem[4]. Esta talvez seja uma das maiores conquistas que virá de um novo paradigma de decência e seriedade.
[1] Exemplo: um governador de Estado está sob investigação. O foro competente para julgá-lo é o Superior Tribunal de Justiça. No curso da investigação, ele se desincompatiliza para candidatar-se a deputado federal. Como não é mais governador, o inquérito baixa para a 1ª instância. Se ele se elege deputado, a competência sobe para o STF. Dois anos depois, ele se afasta para se candidatar a prefeito e a competência deixa de ser do STF. No limite, às vésperas do julgamento pelo STF, ele renuncia. Aí, a competência volta para o 1º grau. O sistema é feito para não funcionar.
[2] Os dados foram fornecidospela Assessoria de Gestão Estratégica do Supremo Tribunal Federal.
[3] No caso específico da denúncia contra o presidente da Câmara dos Deputados, único investigado da "lava jato" cuja competência é do Plenário, as datas foram as seguintes: denúncia apresentada em 20.08.2015 e aditada em 14.10.2015. Foi recebida em 3.03.2016. Se contarmos da data do aditamento, passaram-se cerca de seis meses.
[4] Sobre este ponto, denunciando o círculo vicioso que premia os piores, v. Míriam Leitão, História do Futuro, 2015, p. 177-78.
 é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-mai-23/roberto-barroso-foro-privilegiado-acabar-reduzir-impunidade

sexta-feira, 6 de maio de 2016

A balança do STF no impeachment



Valor - SP (06/05/2016)

Por Malu Delgado e Juliano Basile | De Brasília e Washington

Manifestação na Praça dos Três Poderes, em Brasília: concebido como espaço de conciliação e harmonia entre Executivo, Legislativo e Judiciário, local está desfigurado, segundo Jorge Viana

A leveza dos rostos que circulavam pelo Salão Branco do Supremo Tribunal Federal (STF) pouco refletia o peso do momento político do país e os curtos-circuitos no Executivo e no Legislativo que, com frequência e sem pedir licença, atingem mentes e gabinetes dos 11 ministros da mais alta corte do país. O Supremo tem sido desafiado a tomar decisões cruciais sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava-Jato, e certamente caberá à Corte a carga de dar um desfecho à crise. Mas, na noite de terça-feira, 26 de abril, os mais renomados advogados do país, defensores de empreiteiras e de políticos, confraternizavam em Brasília, entre “proseccos” e vinhos tintos, sem receio de futuros julgamentos.

O grande rumor era a dúvida sobre se o ministro Teori Zavascki pautaria, para a semana seguinte, o caso do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), réu por corrupção passiva em uma ação penal que trata de propinas em contratos da Petrobras e também alvo de quatro inquéritos na Corte. Ontem, o STF acabou determinando o afastamento de Cunha do mandato de deputado federal. Sem poder exercer as atividades de parlamentar, deixa a Presidência da Câmara.

Na terça-feira da semana passada, um dos poucos ministros que ousava circular livremente pelo salão, Marco Aurélio Mello foi interpelado e recebeu um abraço caloroso e efusivo do advogado Marcelo Nobre, que defende Cunha no Congresso e no Supremo. “Coitados desses caras, estão com a corda no pescoço. Não queria estar na pele deles. Não se pode exigir que fiquem aqui, plácidos, diante disso tudo”, comentava outro advogado, num círculo de conversa.

O processo de impeachment exacerba no STF a dialética entre intervenção nas decisões de um outro poder, o Legislativo, e contenção. Políticos da situação e da oposição, integrantes do governo e juristas familiarizados com as entranhas da Corte Suprema asseguram: dificilmente o Supremo modificará a decisão política do Senado em relação ao afastamento de Dilma. Ainda que esse seja o sonho do PT, os ministros não estão inclinados a pôr a mão no vespeiro e fazer análise minuciosa sobre a eventual prática de crime de responsabilidade, o que seria o fundamento jurídico para o afastamento da presidente.

Sob extrema reserva e cautela, ministros do STF têm admitido a atores políticos que caso a instabilidade política e social, em um eventual governo de Michel Temer (PMDB), persista e coloque o país sob nova encruzilhada, certamente a Corte abandonará a confortável postura da autocontenção. Os ministros do Supremo também carregam outra certeza: haverá avalanche de questionamentos futuros, dos dois lados. Será inevitável que a Corte seja chamada a funcionar como arena de decisões políticas. Após afastada, Dilma poderá permanecer no Palácio da Alvorada? Temer, ao assumir a Presidência antes de julgamento definitivo do impeachment pelo plenário do Senado, teria a prerrogativa de anular atos finais do governo Dilma? No Congresso, partidos já formulam questionamentos de natureza administrativa e estudam como e quando apelar ao Supremo para intervir.

O protagonismo do Poder Judiciário, a judicialização da política no Brasil e, mais recentemente, o ativismo judicial, são temas que frequentam rodas de magistrados e políticos há quase uma década. Mas foi no julgamento do mensalão, iniciado em 2012, que os ministros do Supremo tornaram-se celebridades políticas. A altíssima exposição na mídia tirou-os do olimpo e, com o processo de impeachment em curso, as pressões sociais sobre decisões do Supremo são corriqueiras e ainda mais evidentes.

“O Supremo é protagonista eventual e involuntário. Num modelo ideal, o protagonista deve ser o Congresso Nacional. Este é o foro, por excelência, da democracia e da representação política. Agora, há momentos na vida dos povos em que algum tipo de desequilíbrio dá maior projeção à Suprema Corte”, diz ao Valor o ministro Luís Roberto Barroso, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 378, que anulou decisões tomadas por Eduardo Cunha sobre o impeachment, dando a palavra decisória ao Senado e deixando claras as regras a serem seguidas pelos parlamentares nas votações.

“O que o Supremo fez ali foi natural e óbvio. Só houve polêmica porque o país já estava dividido em torno desse assunto. Ali houve dois problemas: o primeiro é que a lei que disciplina o impeachment é de 1950 e, portanto, é em muitas partes incompatível com a Constituição. Já se sabia isso desde 1992, no impeachment do Collor, quando o Supremo também foi chamado a intervir. Portanto, ali, havia uma omissão. O Congresso não atualizou a lei. E, além disso, houve claro descumprimento do regimento interno da Câmara.”

Barroso sustenta que as Supremas Cortes em vários lugares do mundo, como nos EUA — na chamada Corte de Warren (1953 a 1969, sob o comando de Earl Warren) —, na Alemanha — o Tribunal Constitucional Federal Alemão, que atuou no pós-nazismo — e na África do Sul — com o fim do apartheid — adquiriram papel relevante para assegurar transições democráticas. Tal protagonismo, endossa, deve ser sempre temporário em fases de difíceis superações políticas.

“Nosso papel principal é proteger as regras do jogo democrático e proteger direitos fundamentais. Se eventualmente uma Suprema Corte estiver fazendo mais do que isso é porque há alguma situação de desequilíbrio. As democracias têm momentos de crise e momentos de desequilíbrio, mas isso deve ser transitório.” Segundo Barroso, judicialização é fato; ativismo, atitude. “No Brasil há judicialização ampla — quase tudo pode chegar ao Judiciário —, mas ativismo entre baixo e moderado.”

Indicado por Dilma em 2013 para o tribunal, Barroso teve seu “batismo de fogo”, como ele diz, durante o julgamento do mensalão. Foi favorável à prescrição do crime de quadrilha ou bando, por considerar ter havido majoração artificial da pena com intuito de impedir a prescrição. O ministro diz não ser afetado por pressões da opinião pública: “Só faço nesta vida o que considero correto, justo e legítimo. Não existe força mais poderosa do que essa”.

Identificado por grupos políticos da oposição como ministro mais simpático ao PT, Barroso não se curva aos comentários. “Eu até quero bem à presidente e torço pelo bem dela. Dito isso, não faria nem por ela nem por ninguém nada que não fosse correto, justo e nem legítimo. Porque as pessoas, depois que chegam aqui, vivem para a sua biografia. Ninguém vive para a biografia dos outros. Vivo para a minha. Uma coisa que descobri é que só a verdade ofende. Não importa o que circule em lugar nenhum, como não é verdade, sigo o meu caminho.”

Barroso envolveu-se em outra polêmica sobre o cenário político, ao ser flagrado conversando com mestres e doutores da Fundação Lemann recém-chegados dos EUA. Sua interjeição “meu Deus do céu”, diante da foto da convenção do PMDB em que o partido optou pelo rompimento com o governo Dilma, foi transmitida pelo circuito interno, sem que soubesse. Virou manchete de jornais. Cunha, Eliseu Padilha e outros peemedebistas da linha de frente de um eventual governo Temer estavam na foto.

O episódio faz Barroso dar risadas. “Perguntei ao nosso operador de áudio e vídeo se estava sendo gravado e ele foi muito literal. Não estava sendo gravado, mas transmitido, ao vivo, pela rede interna de TV. Inclusive para o comitê de imprensa (...) Enfim, era um comentário mais cidadão do que de ministro do Supremo, sobre uma fotografia. Não tinha conotação pejorativa. Era um pouco no sentido de os quadros políticos não terem se renovado. Essas pessoas da fotografia já estão aí há muito tempo, são as mesmas. Era essa a intenção do comentário e, portanto, não era um comentário depreciativo a ninguém”, justifica-se.

Num outro oposto, o ministro Gilmar Mendes, indicado para a cadeira no STF em 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, desperta a ira de petistas por seus pronunciamentos em relação ao processo de impeachment. Mendes foi advogado-geral da União no governo de FHC (de 2000 a 2002) e também subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil e assessor do Ministério da Justiça no governo tucano. “A gente se qualifica na vida pública tanto pelas amizades que ao longo do tempo você fez quanto pelas inimizades que de alguma forma você angariou. Eu tenho orgulho tanto das minhas amizades quanto das minhas inimizades”, diz, sempre categórico e direto.

O ministro diz, em referência indireta ao PT, achar “engraçado o duplo standard de determinada facção política e ideológica”: se o Supremo lhe ajuda politicamente, ótimo; por outro lado, se lhe causa algum constrangimento ou contrariedade, aí há abuso do tribunal e a decisão é ruim. “Se o discurso do ministro [do STF] ajuda, aí dizem que é válido”, ironiza, lembrando decisões que tomou favoráveis a políticos do PT. “Minhas decisões nada têm a ver com ligações políticas. Me posiciono publicamente, inclusive nas sessões. Não faço demagogia (...) Quanto a vir do governo Fernando Henrique para cá, digo que eu não vim escondido.”

Mendes é o único a antecipar a possível derrota de Dilma caso recorra ao Supremo para anular uma eventual decisão negativa no Senado, o que já é uma posição amplamente debatida nos bastidores do STF. “A jurisprudência do tribunal até aqui sinaliza que é lícito, sim, intervir num processo de impeachment, e isso já tinha acontecido no processo do Collor e aconteceu agora, no que diz respeito ao procedimento. Mas a jurisprudência também tem sido invariável de que não cabe ao Supremo fazer juízo quanto ao mérito da decisão.”

Sobre o rito do impeachment, Mendes divergiu do voto de Barroso. “Não faz sentido decidir-se na Câmara e depois haver ainda um processo alongado, no Senado, para o afastamento. Veja que a gente começa a ter esse quadro de vácuo, com um grande problema de governabilidade e de perplexidade. Mas foi o que acabamos por reiterar.” No impeachment de Collor, atesta, o Congresso agiu rapidamente e em dois dias o presidente estava afastado. Agora, com Dilma, o processo se arrasta e “há muitas discussões que podem levar a novas judicializações” entre “um governo moribundo” e um governo futuro que tentará anular as ações do anterior. O lado positivo da votação na Corte, diz o ministro, é que o tribunal balizou como deve ser feito o processo no Legislativo. “Portanto, tira qualquer debate sobre violência institucional.”

Esse é, também, o argumento do PSDB. A partir do momento em que houve o escrutínio do Supremo sobre o processo, não há que se falar em “golpe”. “O Supremo teve papel muito positivo ao balizar o caminho do impeachment e ao legitimar esse caminho, respondendo a ações propostas pelo próprio governo. Era importante que o Supremo se pronunciasse porque se trata de uma questão política grave, que estava sendo tratada pela Presidente da República e pelos partidos que a apoiam de maneira farsista, que é a farsa do golpe. O Supremo enterrou essa lenga-lenga”, afirma o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que disputou a Presidência como candidato a vice na chapa de Aécio Neves.

Para o tucano, não há dúvida de que cabe somente ao Senado dar a palavra final sobre o impeachment e que não cabe julgamento de mérito pelo STF. “Julgamento de mérito jamais. Quem julga é o Senado.” Para o líder do DEM, deputado Pauderney Avelino (AM), o rito estabelecido pelo Supremo para o impeachment deve ser endossado. “O Estado democrático de direito e as bases sobre as quais o Brasil está fundado é no sistema de pesos e contrapesos. E isso funciona. E funcionou num momento de crise. Portanto, nenhuma crítica aqui ao Judiciário.”

Voz tucana já bem mais moderada, o senador Tasso Jereissati (CE) não esconde o incômodo com a “judicialização excessiva do processo de impeachment”. “A culpa é principalmente do Parlamento e dos partidos, que recorrem ao Supremo para tudo. Muitas vezes, a meu ver, o Supremo tem passado do ponto. E vai se judicializar muito mais”, prevê.

No dia 26, o Salão Branco reuniu magistrados, advogados e ministros do STF para o lançamento do “Anuário da Justiça de 2016”. O presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, tem tomado a cautela de circular pouco em espaços públicos. Apareceu por poucos minutos no local, cumpriu seu papel institucional e sumiu. Teori, por causa da pressão do julgamento de Cunha — do qual é relator — e por sua natureza já altamente reservada, também não é figura de fácil acesso. Marco Aurélio, conhecido por suas falas cáusticas e polêmicas, anda recolhido desde que determinou à Câmara que desse prosseguimento à analise do pedido de impeachment de Temer. Os ministros estão melindrados com críticas, muitas vezes agressivas, que recebem pelas redes sociais e blogs.

Jornalistas ávidos por pronunciamentos dos ministros no auge do impeachment costumam esperar que ao fim das longas sessões no plenário eles respondam a algumas questões pontuais e façam comentários genéricos ou até mesmo confidências sob reserva. Há uma linha divisória — uma barreira física — para garantir que os ministros passem pelo pleno sem serem importunados e sem se misturarem aos cidadãos e advogados que assistem às sessões.

Em sessão na quinta da semana passada, com participação de representantes de músicos, o STF começou a julgar se é constitucional a reforma na Lei de Direitos Autorais

Às abordagens no plenário, no grito e a distância, os ministros Teori e Luiz Edson Fachin reagiram fazendo simpáticos gestos com as mãos, reiterando o “não” ao balançar o dedo indicador. Cármen Lúcia, a próxima presidente do STF, olha de soslaio. Segue à risca a conhecida diplomacia mineira e costuma fugir de embates e conflitos públicos. O decano Celso de Mello, considerado o norte da Corte, segue sempre elegante e cordial, mas também se preserva: “Tenho audiência agora, estou superatrasado”, responde, batendo os dedos sobre o relógio. Ao fim de sua gestão como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro José Dias Toffoli não tem brechas na agenda. Rosa Weber é tão discreta que nem é abordada. A ministra, recentemente, chegou a acionar os seguranças do Supremo ao flagrar um repórter devidamente credenciado na garagem da Corte. O momento de gravidade política pelo qual atravessa o país, segundo confidenciou um ministro, exige da Corte autopreservação e contenção excessiva. O melhor, por ora, enfatizou, é não dar pio sobre o processo de impeachment fora do plenário.

Ainda que a judicialização do Supremo seja um fato e uma consequência da falência do sistema político brasileiro e das frequentes omissões do Congresso, as posições dos ministros da Corte sobre o impeachment são vistas de forma apaixonada pelos políticos. E, sendo governo ou sendo oposição, nenhum parlamentar aprecia o protagonismo político do STF. Vice-presidente do Senado, o petista Jorge Viana (AC) tem ótima interlocução com ministros da Corte e diz dever ao Judiciário a própria vida quando lutou contra o crime organizado em seu Estado. Afirma, porém, que o papel de modular e moderar não está sendo exercido pelo Poder Judiciário.

A judicialização, admite, tem no próprio Parlamento seu maior responsável. “Todos que perdem aqui no Congresso, a primeira coisa que fazem é entrar com uma ação no Judiciário procurando mudar o resultado. O PSDB, inclusive, entrou com ação questionando a vitória da presidente Dilma. Agora, o pior pode estar ocorrendo hoje, que é a politização do Judiciário. Aí, isso é um mal ainda maior do que a judicialização da política.” O petista vê como “perigoso” o “superpoder” dado ao Judiciário no Brasil. “Numa democracia um superpoder tem que estar diretamente ligado à soberania do voto popular.”

Parlamentar consultado em mediações com o Judiciário, o deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), critica o protagonismo “anárquico e autoritário” daquele poder e a omissão do Supremo sobre o impeachment.

“O Supremo até hoje é cobrado pela posição de Pôncio Pilatos que teve na deportação de Olga Benário. O Supremo permitiu que Getúlio Vargas o fizesse — poderia ter impedido o presidente de deportá-la. O Supremo chancelou o golpe de 64. Quando Ranieri Mazzilli [presidente da Câmara] foi empossado Presidente da República interino, no golpe de Auro de Moura Andrade [presidente do Senado em exercício, em abril de 1964], que declarou vaga a presidência com João Goulart ainda em território nacional, o presidente do Supremo Tribunal Federal estava presente.” Damous carrega a certeza de que o STF não vai modificar a decisão do Senado sobre o impeachment. Por isso, conclui, talvez seja importante “que também esse Supremo, essa composição, esteja marcada no futuro pela posição histórica negativa”.

O impeachment, segundo Jorge Viana, é um “golpe institucional em curso que vai deixar grandes cicatrizes na democracia”. E exatamente neste momento, conclui, a Praça dos Três Poderes, concebida por Lúcio Costa e Oscar Niemayer como o espaço da conciliação e harmonia entre Executivo, Legislativo e Judiciário, está desfigurada. “Estamos vivendo numa espécie de arquipélago aqui na praça, em que cada um está na sua ilha e o Judiciário ganha um protagonismo que não combina com o papel que precisa cumprir na sociedade.”

Curiosamente, o advogado e professor de direito penal da USP Pierpaolo Bottini também ressalta a alteração “plástica” na Praça dos Três Poderes. “Antigamente, os manifestantes iam para a frente do Executivo ou do Legislativo. Hoje, quem passa por Brasília sabe que eles estão na frente do Supremo. Isso mostra que o Supremo se transformou num protagonista político, não porque queira, mas porque recebe demandas e tem que dar respostas.” Isso, acrescenta ele, que comandou a Secretaria da Reforma do Judiciário no Ministério da Justiça durante o governo Lula, é “fruto da incapacidade do Legislativo de formar consensos mínimos sobre temas relevantes”. “Se não há consenso político no Legislativo, alguém vai ter que resolver. E esse alguém é o Judiciário.”

Para além da constatação político-arquitetônica, Viana aponta como grave o distanciamento entre Executivo e Judiciário na gestão de Dilma. Trata de esclarecer que não é crítica direta ao ministro José Eduardo Cardozo, advogado-geral da União e antes ministro da Justiça. “O Ministério da Justiça perdeu a importância no governo da presidente Dilma nos últimos anos. Isso é absurdo. As instâncias de interlocução foram minadas e perderam protagonismo. Não tem mais mediação de ninguém. Hoje se você conversa com um ministro do Supremo, os que presidiram e os que vão presidir [o tribunal], todos se sentem um pouco isolados pela falta dessa interlocução que precisa haver, independentemente de quem esteja no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Isso é uma mediação do Estado Brasileiro, não de governos”, afirma Viana.

O senador vai além: “É evidente que houve um isolamento e uma ruptura de qualquer interlocução com o ministro Toffoli, por exemplo. Mas não só com ele, com outros ministros e presidentes. Isso não é bom para o país. É muito importante haver diálogo permanente entre os chefes dos Três Poderes. Senão, vamos viver o que estamos vivendo hoje.” Toffoli foi advogado-geral da União no governo Lula, subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil e era próximo do ex-ministro José Dirceu. Foi assessor jurídico do PT na Câmara e consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT). O encantamento com o PT foi perdido e o governo não conta com votos simpáticos de Toffoli na Corte.

Um conhecedor dos trâmites do STF, sob anonimato, fez a seguinte avaliação: nos mandatos de Lula, o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos tinha trânsito enorme na Corte. “E Lula o deixava transitar. Dilma, não. Ela amarra os ministros, exige radicalismo enorme e fez isso com o José Eduardo Cardozo. Hoje, ele é o melhor advogado-geral da União que ela poderia ter. Porque é um político, um parlamentar na essência, entende como aquilo funciona.”

Parlamentares que circulam com mais desenvoltura pelo Supremo afirmam que há boa relação institucional do governo de Dilma com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski. Tais relações políticas provocam faíscas internas. Para alguns ministros, Lewandowski anda passivo demais diante de um impeachment. “Temos algumas responsabilidades, especialmente em momentos de vácuos, de vazios, e devemos exercê-las. O presidente do Supremo precisa falar. Se o presidente do Supremo, em algum momento, se omite, as vozes mais antigas do tribunal têm que falar”, diz Gilmar Mendes. Esse comentários, afirma, são “balizas” institucionais importantes e desestimulam “eventuais abusos”. Questionado se fazia uma crítica a Lewandowski, Mendes saiu pela tangente: “Não estou emitindo juízo sobre isso. Quem fala pela Casa é o presidente, mas pessoas que passaram pela presidência da Casa também têm, igualmente, responsabilidade institucional”.

Obrigado a intervir sobre temas da arena política, a balança do Judiciário oscila. A mesma Corte que definiu o rito do impeachment, meses depois, num gesto de contenção, evitou levar a plenário a polêmica nomeação do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil. O mesmo STF que mandou prender o senador Delcídio do Amaral, em novembro, revelou dificuldades para analisar acusações contra Cunha na Lava-Jato. O plenário que indicou nova fórmula para contabilizar as dívidas dos Estados voltou atrás, após os alertas de que ela resultaria num prejuízo de R$ 402 bilhões à União, e, em julgamento na semana passada, deu 60 dias para os governos buscarem um acordo sobre o assunto.

Historicamente, o STF adotou a contenção como prática entre o processo de redemocratização do país, na década de 80, até 2003, quando a Corte começou a sofrer mudança progressiva com as indicações de ministros mais preocupados com questões sociais, sob a Presidência de Lula. Essa visão permitiu que a Corte julgasse temas com reflexo na sociedade, como a autorização para pesquisas com células-tronco, casos de abortos de fetos com anencefalia e demarcações de terras indígenas. As incursões a questões políticas foi aumentando, processo a processo, até chegar ao auge no mensalão.

“Acho que, de fato, tivemos um pêndulo”, afirmou o advogado e pesquisador Saul Tourinho Leal. “O STF foi até o excesso e agora está fazendo um movimento de retorno em busca de equilíbrio.” Passada a euforia das grandes decisões sociais pós-2003 e do mensalão, opina Tourinho Leal, o Supremo começou a adotar a contenção após verificar que estava batendo de frente com a classe política. Um exemplo: a perda do mandato de deputados condenados criminalmente, o que levou a Câmara a adotar ações de resistência a decisões do tribunal. “O Supremo percebeu que a lógica da política é outra e que, em questões graves, que passam por quase reforma política, ele não poderá implementá-las sozinho.”

Gilmar Mendes concorda, quase que num desabafo. “Todas as mazelas do sistema político vão ser resolvidas no Supremo? Isso não é possível. Essa reclamação generalizada, do ‘ah, vamos ao Supremo que ele resolve’... Se a gente se ilude com isso e começa a dar respostas fora do script constitucional e das normas constitucionais, em geral a gente acaba errando e criando incoerências do sistema. Precisamos de balizas muito seguras. Não podemos acreditar sermos onipotentes.” A capacidade do Supremo de intervir, salienta o ministro, “parte de uma lógica binária”, arbitrando sobre o que é lícito e o que é ilícito. “Mas a vida é mais complexa que isso. No meio político você pode fazer conformações, fórmulas de transição, composições. Nós não temos meios de fazer isso no âmbito do Judiciário. Ou dizemos que alguém tem direito, ou dizemos que alguém não tem direito. Isso já limita a nossa intervenção, por mais criativos que queiramos ser.”