domingo, 11 de dezembro de 2016

Guilherme Nucci: Segurança pública: um dever de todos

Sentir-se seguro significa estar confortável, livre de preocupações, envolto na sensação de bem-estar. Não por acaso, o termo segurança foi adicionado a outros, fazendo nascer a segurança jurídica (ter o cidadão a certeza de que o Estado não poderá prejudicá-lo sem lei, nem voltar-se contra o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada), a segurança material (ter o cidadão a garantia de não ser agredido de qualquer forma) e a segurança pública (contar a sociedade com a paz social).
De todo modo, o artigo 144 da Constituição Federal é bem claro ao enunciar: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (grifamos). Diante disso, algumas conclusões podem ser extraídas: a) no caput do artigo 5º, o termo segurança diz respeito à segurança individual, como explicitado acima no contexto da segurança jurídica; b) a segurança pública não é direito individual, pois é direito de toda a sociedade; c) a segurança pública conta, não somente com agentes públicos, mas com todos os cidadãos para que se concretize satisfatoriamente.
Ainda, ratificando o conceito de segurança jurídica, inserido no artigo 5º, caput, da CF, é preciso considerar que abrange todos os seres humanos, inclusive os autores de crimes. Note-se que, no rol dos direitos e garantias individuais do artigo 5º, constam vários direitos destinados às pessoas autoras de infrações penais (como se pode prender alguém; quem pode prender; formalidades da prisão; direitos do preso etc.). Assim sendo, a segurança do referido caput diz respeito ao seu aspecto jurídico e não à segurança pública, como sinônimo de ordem e paz no seio social.
Considerando-se os direitos humanos de terceira geração, especificamente, o direito à solidariedade, havemos de entender o compromisso de todos nós em face da segurança pública. É importante cuidar, zelar, denunciar, fiscalizar, acompanhar e vistoriar tudo o que se refere ao interesse público. Desse modo, havemos de prestar a devida atenção tanto à vítima do crime quanto ao agente do delito, para que não se instaure um tribunal de exceção, como se dá, por exemplo, na hipótese de um linchamento.
Alguns países, como o Brasil, vivenciam uma guerra interna entre marginais fortemente armados e policiais, nem sempre com o mesmo calibre de armas. O Estado precisa atentar para tais fatos, apoiando a sua polícia, ao mesmo tempo em que deve exigir respeito aos direitos humanos fundamentais. Não há nenhuma contradição nisso. Se o marginal ataca a tropa com fuzis, possa a tropa ter arma suficiente e eficiente para responder à altura. Entretanto, o fato de parte da criminalidade utilizar armas de grosso calibre não autoriza o resto da polícia a simplesmente eliminar o ladrão ou o assaltante que não os afronta do mesmo modo. Voltemos o nosso raciocínio, novamente, aos princípios fundamentais na esfera criminal: razoabilidade e proporcionalidade.
Aliás, quando se menciona o Estado como violador dos direitos humanos, é preciso destacar que os verdadeiros violadores são os agentes do Estado; desse modo, havendo punição a quem assim agir permite que a imagem do Estado continue preservada, como garantidor dos direitos individuais.
Quem pretende isolar no cenário do direito os “grupos de direitos humanos”, como se fossem apoiadores do crime, é obtuso, cego à realidade. O mesmo se pode dizer daqueles defensores dos direitos humanos cuja visão se volta a sustentar que a defesa da segurança pública é um atraso ou atitude reacionária.
A bem da verdade, soa-me desprezível o uso de frases de efeito: “a turma dos direitos humanos”; “os fascistas da segurança pública”... Prefiro considerar um desatino essa “divisão”, frisando que todos os cidadãos de bem querem viver em paz, sem crimes e sem abusos estatais.
Um dos pontos problemáticos mais relevantes concerne à política de remendos usada pelo Estado para pretensamente resolver problemas. Explicando: a política de remendos diz respeito à repressão ao crime, vale dizer, o que já consta como lesão a algum bem jurídico é objeto de preocupação estatal. Esquece-se o Estado, por seus agentes, que a prevençãoé o melhor caminho. Manter vias públicas limpas e bem iluminadas, inserir a polícia preventiva nos bairros, possuindo contatos com a comunidade, promover o lazer para crianças e jovens, estimular a educação e a cultura como formas de aprimoramento comportamental, instituir um conselho de direitos humanos para que não existam porta-vozes ilegítimos, enfim, adotar um programa de prevenção é o caminho significativamente melhor.
A polícia brasileira (militar ou civil) não é culpada pela decadência da segurança pública. Nem o é a sociedade. As autoridades governantes são as principais responsáveis pelo desatino atual da política criminal, optando por um critério de repressão (sempre atrasado em face do crime) em lugar do fator de prevenção (muito mais eficiente).
Guilherme de Souza Nucci é livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

ARTIGO G.Nucci: 10 anos da Lei de Drogas

A droga da Lei de Drogas
*Por Guilherme de Souza Nucci, livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Completando 10 anos de existência, a Lei 11.343/2006 não oferece nenhum motivo para comemoração, pois ela, se vantagem trouxe, foi somente para substituir outras leis ainda mais decadentes e confusas (Lei 6.368/76 e Lei 10.409/2002). Enquanto muitos juristas debatem os 10 anos da Lei Maria da Penha (Lei 10.340/2006), verificando os seus pontos fracos, com o objetivo de aprimorá-la, as discussões em torno da Lei de Drogas são raras, quase inexistentes. De outro lado, o volume de processos criminais gerados, que se acumulam nos escaninhos forenses de qualquer vara ou tribunal do país, é impressionante. Em algumas varas criminais e turmas do tribunal os processos envolvendo tráfico ilícito de drogas já constituem mais de 50% do volume de trabalho. Desse imenso universo de réus, há os que estão preventivamente presos, o que propicia o aumento descontrolado da população carcerária — e pior, formada por pessoas ainda acusadas, sem condenação.
É preciso operacionalizar uma mudança radical nos chamados pontos-cegosda legislação antidrogas. Não se pode mais aguardar que a situação política do Brasil melhore e/ou a sua economia entre nos trilhos, pois os danos gerados pela quantidade enorme de pessoas provisoriamente presas, em face do número gigantesco de processos em andamento e por condenações inadequadas para a realidade, levarão a um irrecuperável estrago na estrutura jurídico-penal. 
É preciso operacionalizar uma mudança radical
nos chamados pontos-cegos da legislação antidrogas.
O primeiro fator a ser levado em conta diz respeito à diferença entre traficante e usuário, algo que a lei atual tangencia, deixando o critério diversificador em  mãos dos operadores do direito. Preceitua o artigo 28, parágrafo 2o , da Lei 11.343/2006 o seguinte: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Nem é preciso assinalar não ser o referido dispositivo aplicado, com efetividade, no cotidiano das prisões de pessoas que carregam ou manipulam drogas ilícitas. Aliás, torna-se extremamente fácil constatar o que ora se afirma: basta uma consulta à jurisprudência brasileira. O pesquisador poderá ler o conteúdo de sentenças e acórdãos e checar, por si mesmo, a inexistência da exploração desses requisitos para justificar a prisão preventiva de um indivíduo, portador de drogas, geralmente considerado traficante. Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial.
Tarda, há muito, a mão do legislador para corrigir esse distúrbio interpretativo, que provoca, sim, consequências drásticas. Há que se tomar duas medidas urgentes:
a) inverter o elemento subjetivo do tipo específico, retirando-o do artigo 28 para inserir outro no art. 33. Em outros termos, o crime previsto no artigo 33 deve conter uma finalidade especial: para o fim de comercializar, negociar, transmitir a terceiros, mesmo sem fim lucrativo imediato. Afinal, traficante não vive de caridade; as drogas são dadas a certas pessoas, num primeiro instante, para viciá-las; depois, tudo é cobrado. Traficante de drogas é pessoa abastada economicamente, podendo adquirir imóveis, móveis e, principalmente, armas pesadas. Do outro lado, está o consumidor, que deveria simplesmente ser assim considerado, quando o Estado-acusação não conseguir demonstrar a finalidade do transporte de droga para transferência a terceiros. Nesse prisma, quem carrega consigo 2 gramas é, em primeiro plano, consumidor; somente se essa presunção se desfizer (presunção relativa), pode-se acusá-lo de tráfico. Há quem diga não existir essa inversão do ônus da prova. Sugiro a quem assim pense uma consulta na jurisprudência nacional – o que já fizemos – encontrando vários julgados com expressa menção à referida inversão, pois o elemento subjetivo específico concentra-se no artigo 28 – e não no artigo 33 – demonstrado na expressão para consumo pessoal;
b) por mais que, num primeiro momento, pareça uma reforma para engessar a atividade judicial, antes assim do que vislumbrar as imensas diferenças de critérios capazes de apontar o tráfico de drogas, para uns juízes e consumo para outros. É fundamental que o Legislativo estabeleça uma quantidade para o porte de cada espécie de drogas, a fim de que se possa presumir (presunção relativa) o caráter de consumidor de quem a carrega consigo. Outros países assim fizeram, variando de 20g de maconha até 200g da mesma droga. Nada impede que o portador de 20g seja um traficante, travestido de usuário, motivo pelo qual, desmascarado pelas provas efetivamente produzidas nos autos – e não pelo achismo de qualquer operador do direito – assim será condenado.  
Outro ponto essencial é incentivar, cultuar e encerrar com uma conclusão a famosa discussão em torno da legalização do porte de drogas para uso próprio. O debate oficial teve início em julgamento, no Plenário do STF, já existindo três votos pela despenalização e/ou descriminalização do porte de maconha. No entanto, de nossa parte, cremos ser inviável que o próprio Pretório Excelso, por maior boa vontade que possua, estabeleça, sem lei, uma quantidade para ser considerada fato atípico (caso vença a tese da descriminalização ou despenalização total). Essa é uma tarefa do Legislativo, que deve exercitá-la de pronto, em face do caos instalado na interpretação diferenciadora entre o art. 28 e o art. 33. Afinal, o Brasil será um dos países que legalizará a droga (qual?) para consumo pessoal? Respondida essa questão, outras irão surgir para adequar a lei atual à realidade.
Não basta. É fundamental, ainda, estabelecer critérios mais objetivos e rigorosos para a concessão do redutor previsto pelo artigo 33, parágrafo 4o: “Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Observe-se a parte riscada (oficialmente) em virtude do julgamento proferido pelo STF, considerando a referida vedação inconstitucional. Além disso, o Pretório Excelso autorizou a aplicação de qualquer regime para o traficante, embora a maioria fixe, sempre, o fechado. O STF autorizou o uso de penas alternativas, dentro do perfil estabelecido pelo artigo 44 do Código Penal, embora a maioria imponha pena privativa de liberdade. O Supremo Tribunal Federal autorizou a liberdade provisória para traficantes, quando preenchidos os requisitos para tanto, mas a maioria decreta ou mantém a prisão provisória.
Ao menos quanto ao redutor é indispensável a participação legislativa para estabelecer um quantum (critério objetivo, formador de presunção relativa), servindo de limite ou base para a aplicação da causa de diminuição. É fundamental retirar a expressão “não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, pois tem dado margem a interpretações elásticas, a ponto de considerar qualquer um como traficante dedicado a atividades criminosas. Afinal, convenhamos, a expressão em si não diz absolutamente nada. Se o sujeito é primário e tem bons antecedentes, como regra, não se dedica à vida criminosa. E não será com a sua primeira condenação por tráfico que dentro desse perfil possa ser considerado.  Ademais, se o indivíduo é integrante de organização criminosa, aplica-se o rigor da Lei 12.850/2013 e nem é preciso falar em redutor.
A par de todas essas mazelas, há uma parcela de responsabilidade do Judiciário, no tocante à extensão da prisão provisória, sem que se analise, com o devido rigor, o binômio razoabilidade e proporcionalidade. Um acusado por tráfico de drogas, cuja quantidade seja pequena ou média, não pode jamais ficar sujeito a prisão preventiva de meses, por vezes atingindo mais de ano. Fere a razoabilidade, mormente sendo primário, com bons antecedentes. E temos constatado que tal situação acontece. Por outro lado, todo magistrado deveria checar, também, a proporcionalidade da prisão, fazendo um prognóstico, ou seja, naquele caso concreto, em tese, será viável aplicar o redutor? Se a resposta for afirmativa, significa uma diminuição considerável da pena e a prisão preventiva poderá tornar-se visivelmente desproporcional em relação à futura sanção. Lembremos que será aplicada a detração (art. 42, CP), descontando na pena todo o período de prisão provisória. Não se trata de “juízo de adivinhação”, mas de prudência judicial. Estuda-se, em todos os níveis – da graduação à pós graduação – consistir a prisão provisória a exceção, no sistema legislativo brasileiro, enquanto a liberdade do sujeito inocente, a regra. Por piores que sejam os tempos, focando-se o aumento da criminalidade, não se pode olvidar a base e a estrutura do processo penal almejado como ideal.
Estas linhas representam algumas breves considerações acerca da Lei de Drogas, que já não é atual, encontrando-se em franco desalinho em face da realidade. Há que se aplicar a uma reforma nesse cenário baseada na política criminal eleita pelo Estado Democrático de Direito. Com a palavra, o legislador.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Entrevista Fábio Tofic, novo presidente do IDDD

GANÂNCIA DO ESTADO

"Melhor forma de combater a corrupção é limitando poderes dos agentes públicos"


O criminalista Fábio Tofic Simantob tem um duro desafio pela frente. Ele quer mostrar para a sociedade que o cumprimento das regras é tão importante quanto o combate ao crime. O novo presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), chega à instituição em meio a um cenário que parece desolador, onde direitos são suprimidos em nome da segurança ou do “combate à impunidade”.
Tofic não vê com bons olhos as chamadas 10 medidas contra a corrupção, defendidas pelo Ministério Público Federal. Para ele, é “um pouco constrangedor” ver membros do MPF proporem medidas que afetam a Justiça estadual com base na experiência que tiveram na Justiça Federal. “É como se um chef francês resolvesse defender perante uma plateia de famintos somalianos que o grande problema do mundo é a obesidade”, afirma o novo presidente do IDDD.
Em entrevista exclusiva à ConJur, o criminalista é categórico ao definir o pacote de mudanças legais defendidas pelos promotores e procuradores: trata-se de uma busca por mais poder. “Se espremermos o pacote das dez medidas, veremos que o que sobra são agentes da Justiça querendo angariar mais poderes. Só se esqueceram que poder ilimitado é uma das causas mais evidentes de corrupção sistêmica.”
Entre os movimentos que explicitam o rebaixamento do direito de defesa está a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal, que passou a permitir a prisão de réus antes do trânsito em julgado. Uma vez promulgada, a Constituição deve ser preservada, respeitada, seguida. Para Tofic, a Constituição é clara ao definir que o processo se encerra quando se encerram os recursos. Assim, na visão do novo presidente do IDDD, ao permitir a prisão para pessoas condenadas em segunda instância, antes do fim da ação, o STF diz que até mesmo aquilo que está escrito pode ser mudado. E essa relativização é um dos maiores fatores de insegurança jurídica.
Ainda na entrevista à ConJur, Fábio Tofic Simantob rebate a acusação feita por membros da Justiça Federal de que, ao buscar nulidades no processo, os advogados se esquivam de enfrentar o mérito das questões. Para ele, a culpa das nulidades não pode ser atribuída ao advogado, mas a um sistema que não prioriza as provas. “Quem abandonou o debate de mérito foi o próprio Estado, ao aceitar como provas o mesmo padrão que se usava no século XIX para condenar alguém. Restou à defesa as teses processuais. É um caminho óbvio e natural. Fruto de um faz de conta processual que o Judiciário não teve coragem de enfrentar para não entrar em confronto com a polícia e com a opinião pública”, diz.
Tofic Simantob foi vice-presidente do instituto que agora presidirá e participa também do conselho do Movimento de Defesa da Advocacia. O criminalista traz no histórico de processos em que atuou nomes como o marqueteiro João Santana, o banqueiro Edemar Cid Ferreira e os funcionários da Engevix, alvo da operação “lava jato”.
Leia a entrevista:
ConJur — Ao deixar a presidência do IDDD, o advogado Augusto de Arruda Botelho falou que “o momento é ruim para o direito de defesa”. Quais são os principais problemas que a entidade tem identificado? São mudanças que podem ser associadas à "lava jato"? Ou têm afetado também acusados menos famosos e que envolvem casos menos midiáticos?
Fábio Tofic —
 Existem duas justiças criminais. Uma Justiça criminal é aquela que parece série de TV, onde as operações têm nome, os investigados são conduzidos por policiais armados até os dentes e as fases de investigação são acompanhadas de entrevistas coletivas. A outra Justiça criminal não conhece holofote algum e, em vez de políticos e empresários poderosos, tem como alvo os pobres. São pessoas que, ainda que inocentes, são tratadas como se fossem culpadas, muitas vezes enviadas para a cadeia sem provas. A “lava jato” não é infalível como pregam alguns de seus condutores. Há problemas, e não são pequenos. Mas essa outra Justiça preocupa muito mais porque ela opera quase exclusivamente à base da supressão de direitos. Poucas são as vozes que se levantam para questioná-la. O IDDD tem um papel fundamental nesse campo. 
ConJur — O direito de defesa está sendo rebaixado no Brasil? O senhor acha que a população entende o que é isso?
Fábio Tofic —
 A supressão ao direito de defesa é cometida de forma velada. Ninguém a explicita. Nenhum delegado, promotor público ou juiz escreverá que este ou aquele cidadão foi encaminhado ao presídio porque era negro ou pobre. Nos códigos está tudo escrito, tudo desenhado para que o cidadão não seja desrespeitado. Só que não funciona, principalmente para as camadas mais desassistidas. Ainda condenamos com prova produzida no inquérito, usamos provas do século XIX, como testemunho de ouvir dizer, reconhecimento testemunhal, testemunho de policiais. Raríssimas vezes há preocupação com preservação da integridade da prova. O sistema caminha sempre no sentido da condenação. Quando o réu consegue contratar um bom advogado, as mazelas até podem ser evitadas. Mas é uma pequena minoria.
ConJur — O que o senhor pretende mudar no IDDD, como presidente?
Fábio Tofic —
 Não há dúvida de que é preciso combater o crime, mas os fins não podem justificar os meios. Culpados só devem ser mandados para a cadeia após um processo penal irreparável, e sabe por quê? Porque processos penais conduzidos de forma equivocada produzem injustiça, que vai desde o enquadramento equivocado que aumenta a pena até a condenação de um inocente. Nosso maior desafio como país é combater o crime dentro das regras. E o maior desafio do IDDD é mostrar para a sociedade que o cumprimento das regras é tão importante quanto o combate ao crime. Uma coisa é a justiça, outra bem diferente é o justiçamento. Em nome da condenação dos culpados, o Estado não pode adotar uma conduta condenável. Infelizmente, as pessoas só se dão conta da importância do direito de defesa quando se tornam rés. É uma forma muito ruim e dura de aceitar que as coisas precisam mudar.
ConJur  O Direito Penal do Inimigo é uma realidade nos nossos tribunais?
Fábio Tofic —
 O Direito Penal caminhou nos últimos anos para um afrouxamento do princípio da legalidade, mediante a adoção de institutos que alargam demais a responsabilidade do individuo. Há 20 anos, acreditava-se que o Direito Penal caminharia para um Direito Penal mínimo. Deu-se o inverso. Inflacionou-se a quantidade de novas condutas tipificadas como crimes, ao passo que algumas figuras novas criaram um sistema que exige conduta quase heroica do cidadão na prevenção do crime. Refiro-me ao domínio do fato, cegueira deliberada, dolo eventual, responsabilidade por omissão, e outras excentricidades. Enquanto isso, o Estado ganha cada vez mais poder e força, e é quase sempre desculpado quando comete erros.
ConJur — O punitivismo foi fortalecido recentemente no nosso Legislativo ou ele sempre teve força lá e agora está sendo mais sentido no noticiário?
Fábio Tofic —
 A condenação sempre será mais popular do que a absolvição. O ser humano se satisfaz com a punição dos outros, até como uma forma de expurgar seus próprios pecados. Vivemos numa sociedade onde é normal comparecer à passeata contra a corrupção no domingo, e na segunda pagar propina para garantir que o filho consiga a carteira de habilitação sem se submeter às provas de praxe. À contravenção dos outros a forca, à nossa o perdão. Os partidos capitalizam esse sentimento, e passam a usá-lo de forma populista. Essa fórmula não é nova. Produz leis ruins, e sensação enorme de insegurança
ConJur — É possível o cidadão (réu) se defender em paridade de armas com o Estado, que é Ministério Público, polícia e juiz?
Fábio Tofic —
 Do jeito que o sistema está montado hoje, arriscaria dizer que não, o que é um absurdo total. Ao expor as entranhas da estrutura do poder político, a “lava jato” gerou uma onda de indignação nacional, que sugere existir dois tipos de brasileiros. Os que querem purificar o país e os que querem manter a podridão. As vozes que se levantam para questionar o método da investigação, ou mesmo debater temas como a paridade de armas, acabam carimbadas como defensores da imundície praticada em Brasília. Precisamos entender que o momento é adverso, mas não podemos esmorecer. O direito de defesa é uma luta de todos, não apenas dos advogados. Sabe o combate ao colesterol alto? É um tema defendido por médicos, certo? Só que quem morre com artéria entupida é a sociedade.
ConJur — O que o senhor acha das “10 medidas contra a corrupção”, defendidas pelo Ministério Público Federal?
Fábio Tofic —
 É um pouco constrangedor ver membros do MPF proporem medidas que afetam réus da Justiça estadual (onde está a esmagadora maioria de réus do país), apenas com a experiência que tiveram em alguns poucos casos na Justiça Federal. É como se um chef francês resolvesse defender perante uma plateia de famintos somalianos que o grande problema do mundo é a obesidade. Se a “lava jato” conseguiu o êxito todo que conseguiu sem as dez medidas, é porque a lei não precisa ser alterada para que a corrupção possa ser combatida. A “lava jato” é a maior prova contra as dez medidas. Se espremermos o pacote das dez medidas, veremos que o que sobra são agentes da Justiça querendo angariar mais poderes. Só se esqueceram que poder ilimitado é uma das causas mais evidentes de corrupção sistêmica. A melhor forma de combater a corrupção é limitando, e não ampliando os poderes dos agentes públicos.
ConJur — É papel do MPF propor leis e fazer campanha popular pela aprovação delas?
Fábio Tofic —
 Ainda que discorde da lista das dez medidas, não posso negar ao MPF o direito de lutar por aquilo que acredita. A sociedade ganha quando todos os segmentos se mobilizam. Lutaremos para mostrar que eles estão equivocados. Trata-se de um debate saudável, próprio da democracia.
ConJur — O juiz Sergio Moro tem ganhado os holofotes. A atuação dele é representativa do Judiciário brasileiro?
Fábio Tofic —
 Se todos os juízes trabalhassem o tanto que ele trabalha, os processos andariam mais rápido, prescreveriam menos, e daria até para esperar o trânsito em julgado das condenações antes de mandar prender o réu.
ConJur — Aliás, hoje vimos a notícia de Sergio Moro em um almoço com artistas, de apoio a ele mesmo. É papel de juiz fazer isso?
Fábio Tofic — Moro virou um símbolo, e é natural que queiram homenageá-lo. Não me sinto confortável em julgar seu comportamento social. Limito-me a debater suas sentenças.
ConJur — Compartilhamento de provas com a Suíça sem autorização do Ministério da Justiça, grampos em escritório de advocacia (Teixeira Martins), presos preventivamente sendo soltos após fazerem delação... A operação “lava jato” respeita as garantias dos cidadãos?
Fábio Tofic —
 Estas respostas precisam ser dadas pelos nossos tribunais. Mas uma coisa posso garantir, a história dificilmente nos absolverá da forma como foram usadas as prisões neste caso, como inegável instrumento de obtenção de confissões e delações. Só não percebe isto quem não leu os autos.
ConJur — O uso de grampos é indiscriminado no Brasil? As delações premiadas, que ganharam espaço com a operação “lava jato”, podem ser vistas como instrumento de defesa? Ou são um instrumento do Estado para investigar?
Fábio Tofic —
 Ninguém pode ser contra o direito que um réu tem de revelar crimes em troca de um benefício qualquer, por exemplo, a redução na sua pena. Essa possibilidade está prevista no nosso ordenamento jurídico. O problema começa quando os acordos de colaboração se tornam uma forma que o Estado encontrou de suprir sua incapacidade de investigar. Uma coisa é fazer buscas e apreensões, juntar documentos, contratos, horas e horas de áudio, listas e listas de mensagens trocadas por SMS ou WhatsApp. Outra, muito diferente, é saber o que fazer com esse material todo. As cenas em que policiais paramentados recolhem HDs e caixas de papelão podem sugerir que a qualidade da investigação policial no Brasil atingiu patamares internacionais. Não nos deixemos impressionar. Está cada vez mais claro que as sucessivas fases da “lava jato” se amparam basicamente no que disseram os delatores. Basta abrir os jornais para constatar que, em muitos casos, delatar virou uma opção lucrativa, que garante a liberdade antecipada e salva uma parte significativa do patrimônio. Será que a força-tarefa não está, involuntariamente, patrocinando um bom negócio? Nos EUA, onde tais acordos surgiram, não se permite que culpados em maior grau saiam livres pela delação, nem que culpados de menor grau sejam punidos de forma tão severa. Lá, o réu tem direito a celebrar um acordo mesmo que não seja de delação. Aqui não. Quem sabe pouco fica preso. Quem sabe muito sai rápido. Esse sistema a longo prazo é capaz de produzir grande injustiça, e reforçar o sentimento de impunidade que a “lava jato” diz combater.
ConJur — O conteúdo das delações pode ser combinado antes?
Fábio Tofic —
 O acordo de colaboração é um pacto, uma troca. Os réus contam o que sabem em troca de um benefício. Tanto o benefício quanto o conteúdo da colaboração é discutido abertamente, do contrário, não seria um acordo.
ConJur — Quais são as mudanças legislativas possíveis para evitar que as prisões sejam usadas para obter acordos de delação?
Fábio Tofic —
 Prisão preventiva não poderia ser objeto de negociação. Ou existem motivos para a prisão, ou não existem. A lei não prevê a possibilidade de barganhar uma coisa pela outra. A lei prevê benefícios penais, e não processuais. Tudo que pode ser barganhado passa a ser motivo de “chantagem”. O mesmo ocorre quando se permite barganhar a delação com benefícios a familiares. Permite que a ameaça a filhos e parentes se torne instrumento de pressão contra o réu. Este ciclo não faz bem ao Direito nem à Justiça.
ConJur — Passamos há pouco tempo por operações que foram anuladas por erros da investigação, como castelo de areia e satiagraha. A “lava jato” seria impossível em outra época?
Fábio Tofic —
 Não vejo aí uma discussão de cunho temporal. As autoridades cometeram erros gravíssimos na condução daquelas operações. Tão graves que o Poder Judiciário as liquidou.
ConJur — Qual será o legado da “lava jato”?
Fábio Tofic —
 Difícil prever. Uma vez perguntaram a um líder chinês qual foi o impacto da Revolução Francesa, e ele respondeu que ainda era muito cedo para saber. Sem dúvida haverá resultados positivos. A forma como se enxerga a corrupção nunca mais será igual.
ConJur — O senhor acha quer a mudança de entendimento do STF, permitindo a prisão antes do trânsito em julgado, é um retrocesso? O senhor vê chance de essa posição ser revista em breve?
Fábio Tofic —
 Temos uma Constituição, redigida com um único propósito: ser o pilar do nosso ordenamento jurídico. A Constituição brasileira pode ser boa ou ruim, pode ser discutida, pode até ser emendada. Aliás, se eu fosse convidado a mexer na Constituição, seguramente faria vários ajustes. Mas nada disso está em discussão. Uma vez promulgada, a Constituição deve ser preservada, respeitada, seguida. E nossa Constituição não deixa dúvidas sobre esse assunto. O processo se encerra quando se encerram os recursos. Numa primeira passada de olhos, pode ficar a impressão de que o Supremo Tribunal Federal está agilizando o andamento dos processos penais. É uma leitura. A minha é um pouco diferente. O Supremo Tribunal Federal está dizendo para a sociedade que até mesmo aquilo que está escrito pode ser mudado. Quando o que não se discutia passa a ser discutido, quando tudo pode ser relativizado, surge a insegurança jurídica. Os países são estáveis não apenas quando a economia é previsível, mas quando o arcabouço legal é sólido.
ConJur — O que acha de o ex-presidente Lula ter ido à ONU para reclamar da atitude do juiz de seu caso? É significativo?
Fábio Tofic —
 Aprovemos ou não, todo investigado tem o direito de fazer o que entender que está ao seu alcance para se defender. É uma questão de princípios. O ex-presidente é investigado e, juntamente com seus advogados, viu nesse expediente um caminho que faz sentido. Não me cabe questionar.
ConJur — Para que serve o IDDD?
Fábio Tofic —
 Serve para lutar dia e noite por um direito fundamental da sociedade nas democracias, que é o direito de defesa. Serve para garantir aos presos o direito a um julgamento. Veja bem: não estou falando em julgamento justo, mas em julgamento. Boa parte dos nossos presos não foram julgados. O IDDD serve para garantir que o Estado seja obrigado a produzir condenações baseadas em provas de qualidade. Serve para assegurar a presunção de inocência. Serve para combater o uso desmedido das prisões preventivas, para defender um tratamento digno durante todas as fases do processo.
ConJur — Advogados apontam que a OAB não atua na defesa do direito de defesa. O senhor concorda? É papel do IDDD preencher esse espaço?
Fábio Tofic —
 A OAB tem um grande escopo de atribuições, entre as quais está, sim, denunciar as falhas no direito de defesa. O IDDD funciona como um reforço concentrado nesse tema. OAB e IDDD são grandes parceiros.
ConJur — Alguns setores da Justiça Federal reclamam que advogados que buscam nulidades processuais são menos preparados, ou não conseguem enfrentar o mérito. O que acha desse tipo de raciocínio? Esse tipo de defesa acabou? O processo virou apenas formalidade para se chegar a uma sentença?
Fábio Tofic —
 A priorização das nulidades em detrimento do mérito não é culpa dos advogados, mas de um sistema que não prioriza a prova no julgamento. As provas no Brasil são pífias, e isto é responsabilidade da polícia e do MP. O juiz aqui costuma se contentar com níveis baixíssimos de qualidade da prova. Até pouco tempo ninguém sabia o que era cadeia de custódia da prova. Se um advogado falar sobre isto no processo, vai ser motivo de piada. Quem abandonou o debate de mérito foi o próprio Estado, ao aceitar como provas o mesmo padrão que se usava no século XIX para condenar alguém. Restou à defesa as teses processuais. É um caminho óbvio e natural. Fruto de um faz de conta processual que o Judiciário não teve coragem de enfrentar para não entrar em confronto com a polícia e com a opinião pública.
http://www.conjur.com.br/2016-ago-09/entrevista-fabio-tofic-simantob-presidente-iddd

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Curso de tecnólogo jurídico: assumimos a rabulice de vez no ensino de Direito

OPINIÃO

1 de agosto de 2016, 8h02

Foi divulgado na ConJur (aqui), no dia 26 de julho de 2016, que o MEC impediu a abertura de um curso para a formação de tecnólogos em Serviços Judiciários solicitada por uma faculdade privada do Paraná, a fim de evitar um possível conflito profissional e confusão com o exercício da advocacia. O Conselho Federal da OAB também foi chamado a se manifestar sobre a questão, emitindo parecer contrário à proposta, porque o tal tecnólogo exerce(ria) atividades que são próprias de advogados e estagiários em direito.
Embora, de início, a notícia do trancamento gere alivio, ela é, na verdade, desesperadora. E por quê? Porque ela denuncia a que ponto chegamos quando se trata do ensino do direito no Brasil. Ou alguém vai dizer que isso nada tem a ver com o ensino jurídico? E que isso é bom para nosso Pindorama? Bom para quem? Bom para quem vende o curso. Tudo isso fica bastante claro no restante da notícia, que não somente informa a existência de dois cursos de tecnólogo em Serviços Jurídicos funcionando no Brasil — com status, portanto, de ensino superior — mas que também chama a atenção para a existência de cursos técnicos em Serviços Jurídicos espalhados por todo o país, inclusive com reconhecimento pelo MEC no catálogo nacional de cursos técnicos. Esse MEC... As montanhas nos aguardam.
Em 2014 já havia sido criticado o PL 5.749/2013[1], que objetiva alterar o Estatuto da OAB e criar, no Brasil, a figura do paralegal, uma espécie de “advogado-pigmeu” que, não tendo conseguido aprovação no Exame de Ordem, ficaria no “limbo” (escrevi sobre isso). Em vez de resolver o problema do deficiente ensino jurídico, a solução apresentada no referido projeto consiste em atacar uma das suas principais consequências: o problema de não se saber o que fazer com os milhares de bacharéis em Direito não aprovados no Exame de Ordem. Bingo. Mutatis, mutandis, usando o exemplo do futebol: é como se, em face de os chutadores de faltas estarem fazendo poucos gols, a solução fosse a extinção da barreira e a proibição de os goleiros terem mais de um metro de altura. Otimização: emprego de goleiro para pigmeus.
Sigo. A proliferação de cursos técnicos em “serviços jurídicos” e a tentativa de criar cursos de tecnólogo jurídico – repita-se, com status de curso superior – é um sintoma da crise do ensino jurídico no Brasil, que vem se tornando uma espécie de curso preparatório para o Exame de Ordem e para outros “concursos”. Dito de outro modo, na medida em que as faculdades de direito têm deixado de formar juristas, contentando-se com o ensino “manualesco”, “concurseiro” e “oabeiro”, caiu a diferença entre um técnico em serviços judiciários (com curso técnico ou superior) e um bacharel em direito que sequer consegue ser aprovado no exame de Ordem. Na verdade, do jeito que as coisas andam, não é possível duvidar que um tecnólogo judiciário com curso superior (há dois funcionando, como acima referido)” e um bacharel em direito logo, logo, sejam praticamente a mesma coisa. Aliás, não faltará quem faça uma equiparação “legal”.
A pretensão de criação de um curso de serviços jurídicos deveria causar espanto na comunidade jurídica, mas parece ser mais uma coisa que entra por um ouvido e sai pelo outro. Com tanta notícia e tantas injustiças cotidianas, nem dá tempo para reclamar...Mormente quando uma ação penal inicia e termina no mesmo dia (caso do Acre criticado em minhacoluna) ou quando um desembargador federal “perdoa” advogados por defenderem clientes (ver aqui a bela matéria feita por Marcos de Vasconcelos, da nossa ConJur). A que ponto chegamos?
De fato, o ensino está em crise. A aplicação do direito está em crise. Não conseguimos fazer cumprir minimamente as leis e os Códigos. O que vem valendo é a opinião pessoal do judiciário sobre as leis. E, atenção: um bocado de gente contribuiu para isso, incluindo professores mal preparados e o-modo-cursinho-de-ensinar (agora já existem os coachings ou CEO’s ). Ou vocês acham que juízes, promotores e outros lidadores do direito são filhos de chocadeira?  Quando maior a capacidade de decorar e repetir o óbvio ou desviar de mazelas dos elaboradores de prova, “mais apto” você é. As faculdades treinam os alunos para os quiz shows que vêm pela frente. Aliás, é assim que selecionamos os agentes públicos de carreira jurídica no Brasil. Concursos viraram quiz shows. Mas isso é apenas a ponta do iceberg....O direito é vítima de instrumentalismo no sense and unprecedented.
De minha parte, não me causa espanto em razão de que venho denunciando de há muito em meus livros e cotidianamente na coluna Senso Incomum. Devo ter escrito no mínimo umas quinze colunas sobre a crise do ensino. Ou seja, a criação de um curso tecnólogo de serviços jurídicos não seria o problema. O problema real é no que transformamos o direito... Estamos repristinando aquilo que, antigamente, se chamava de rábula. Sim: transformamos o ensino do direito em uma rabulice. E o exercício do direito... em uma humilhação, como escrevi na última coluna.
Isso tudo mostra o quanto fomos longe demais. Um curso de técnico judiciário oferece disciplinas como “Introdução ao Estudo do Direito”, “Direito Penal e Processo Penal”, “Teoria Geral do Processo”, quase que como um espelho da grade curricular dos cursos de Direito, porém de modo muito mais “simplificado” do que deve(ria) acontecer nas faculdades de Direito[2]. Mas, então, por que o sujeito não cursa a faculdade de direito? Quem ministra aula nesse tipo de curso? O ferreiro? O marceneiro? Ah, são professores...  de direito. Então, cara pálida, qual é o busílis?
O busílis é que isso tudo faz parte do imaginário pequeno-gnosiológico que tomou conta do direito de Pindorama. Um detalhe que é de fazer rir: se o curso é técnico e o lema de quem defende esse ornitorrinco jurídico é a prática (porque odeiam teoria), qual é, então, a razão de ter disciplina deIntrodução ao Estudo do Direito? Pindorama servindo de exemplo para o...quarto e quinto mundos. O prêmio (Ig)Nobel é nosso.
Não deverá causar surpresa se, em breve, alguém sugerir fechar as faculdades de Direito e substituí-las por cursos técnicos em serviços judiciários. Aliás, o réu não se ajuda muito. Há alguns anos, um presidente da Capes chegou a sugerir que se fizesse um doutorado profissional em direito e se acabasse com a pós-graduação stricto sensu acadêmica. Para ele, direito era pura técnica e instrumento. Pensando bem, a valer o que está sendo feito...não sei, não. Por isso minha insistência de que essa crise ainda pode matar o direito. Tudo isso é autofágico. Canibalismo epistêmico.
Afinal de contas, quanto mais se acreditar que o estudante de direito deve ser “treinado” para resolver as questões do Exame de Ordem e dos concursos públicos – elevando os índices de aprovação das instituições a qualquer preço – com aulas simplificadas, cantaroladas e decoradas com rimas e jargões (ouçam essa sobre o ECA – tchura, tchuru ecá), mais próximos os cursos de direito estarão de se tornar  cursos (meramente) técnicos. É incrível como disciplinas de cunho reflexivo são tratadas com menor importância e as discussões filosóficas como mera “perfumaria” ou ornamento nos cursos de Direito. A cisão metafísica entre “teoria” e “prática” fez com que a “prática” se autonomizasse ao ponto de, nesses cursos técnicos nos quais se busca preparar “profissionais” para lidar com uma prática descolada da teoria, ser oferecida no último semestre uma disciplina de “vivência jurídica”. Sim: uma disciplina chamada vivência jurídica. Só estocando comida, mesmo. Muita.
Para quem não sabe, circula uma lenda urbana de que hoje o professor bom é o “achado na rua”, isto é, aquele que sabe da prática e que desdenha qualquer “firula” ou “filigrana”. Mas, o que isto, a prática? Isto que está aí? Fujamos, pois.
Outra coisa: no imaginário que se forjou, ninguém se pergunta por que alguém cursa durante cinco anos uma faculdade de Direito e ache natural que, depois, se curse mais um ou vários anos de curso preparatório para passar num exame de ordem. Ninguém se pergunta sobre a coincidência de que os professores que lecionam na faculdade sejam (quase todos) os mesmos dos cursinhos de preparação.
Ao que tudo indica, o tecnólogo ou mesmo o curso técnico de serviços judiciários nada mais é que uma espécie de versão 2.0 do direito simplificado, mastigado, dos livros cujas capas deveriam conter uma advertência do tipo “o uso constante deste material pode fazer mal a sua saúde mental”.
Daí me pergunto – sarcasticamente : qual é a necessidade de um curso de tecnólogo de serviços jurídicos, se boa parcela dos cursos jurídicos no Brasil já se prestaria, no máximo, somente para isso ou que pela sua qualidade atingiriam apenas isso?
Seria de rir, se não fosse de chorar. Levemos a sério o Direito é o que venho dizendo de há muito. Não adianta esbravejar e blasfemar quanto a ideia de criar um curso tecnólogo de serviços jurídicos, quando quem critica (vítimas e algozes) não se digna a compreender a problemática. Ela é mais estrutural, pois!
Venho dizendo, à sociedade e à saciedade, que o direito é mais sofisticado do que isso, daí porque não podemos tratar tão mal nosso precioso objeto de trabalho. Paremos com o canibalismo jurídico. O efeito colateral temos visto diariamente nos foros, nas decisões judiciais, na advocacia, na atuação das defensorias e do ministério público. Todos de alguma maneira têm colaborado para esse caos. Não há inocentes.
Uma questão: eu queria saber quem teve essa ideia. É genial, pois não? Pindorama deve ganhar um Nobel. Vamos todos a Estocolmo. Agora vai.  Mas, só fiquei com uma pulga atrás da orelha. O MEC barrou alguns cursos. Só que, ao que li, outros estariam liberados? E será sério esse argumento de que a autonomia universitária dá poderes a que sejam criados esses tipos de cursos “técnicos”? Autonomia, agora, é soberania? Quer dizer que, pela autonomia universitária, é possível criar qualquer tipo de curso? Se, sim, por que não criar um curso para fazer jogo do bicho? Ou um curso “como ensinar direito com música funk”? Pode tudo? Eu sempre achei que existia uma Constituição e uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mas, pelo visto, vivemos em um estado de natureza. Vale tudo.
Post scriptum: quarta-feira (3/8), às 19h, estarei tomando posse como membro da Comissão OAB vai à faculdade, na sede da OAB-SP, na rua Maria Paula, 35. E farei uma conferência, na sequência, sobre exatamente essa temática: As (im)possibilidades transformadoras do ensino jurídico. Convite feito, pois.

[2] Veja aqui um bom exemplo da “grade curricular” de um desses cursos:https://www.univates.br/tecnicos/servicos-juridicos/disciplinas
 é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 1 de agosto de 2016, 8h02

terça-feira, 21 de junho de 2016

O declínio da imparcialidade na era do ativismo judicial midiático

21 de junho de 2016, 7h32

Por  e 

Quando vimos o Supremo Tribunal Federal aproveitar a brecha deixada pelo Congresso Nacional para explicitar o espírito constitucional em questões como a união de pessoas do mesmo sexo e o aborto legal para fetos anencéfalos, muitos chegamos a comemorar. Afinal, o Congresso Nacional estava sendo omisso em questões que deixavam o Brasil em situação vexatória no cenário internacional e perigosa na ordem nacional. Quem, em sã consciência, queria ser comparado às jovens democracias nominais africanas dominadas por governantes atrasados, espúrios e comprometidos com as trevas religiosas?
Ao verem a mídia convocando a população para ir às ruas fazer a democracia, num contexto de grave crise político-institucional, muitos consideraram que aquele era o caminho. Isso porque tínhamos toda uma existência nacional de atestada passividade democrática, que nos fazia mais espectadores que sujeitos do nosso destino. Como então não avalizar a associação do Judiciário com a mídia para o bem da nação?
Da posição de legislador ad hoc e de meios de comunicação salvacionistas, o Judiciário e a mídia brasileiros passaram rapidamente a exercer a liderança do processo político. Pautaram os políticos por meio de reuniões nada transparentes, suspenderam, com argumentos enganosos, as liberdades individuais em processos judiciais questionáveis, articularam a polícia federal para a concretização de seus interesses. Em mecanismo de retroalimentação, a mídia retribuiu as informações privilegiadas recebidas dos juízes com capas e manchetes que os alçavam à condição de quase divindade. Em contrapartida, o Judiciário atribuiu à mídia a condição de garante da liberdade de expressão. Deveríamos lembrar sempre que juízes já se sentiram eleitos por Deus e que muitos comunicadores sentem-se assemelhados a deuses ao manipularem informações e a opinião pública.
Muitos são os episódios que colocam em xeque a imparcialidade do Judiciário ao longo do processo de impeachment. Para fins de análise, destacamos três: a disponibilização das escutas telefônicas do ex-presidente Lula com a presidente Dilma Rousseff pelo juiz Sergio Moro; a decisão que suspendeu a posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil pelo juiz Itagiba Catta Preta Neto; e o encontro do ministro do STF Gilmar Mendes com o presidente interino Michel Temer.
No primeiro caso, em 16 de março, o juiz do processo da operação "lava jato" Sergio Moro, por meio de uma decisão judicial de legalidade questionável, determinou o levantamento do sigilo de áudios que haviam sido interceptados poucas horas antes da própria decisão. Na motivação da decisão, afirmou que o levantamento propiciava “não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública”. Os áudios foram, assim, disponibilizados para o público e, na mesma noite, o Jornal Nacional, da Rede Globo, fez uma leitura dramática das falas envolvidas na gravação, causando enorme comoção social. O episódio é considerado uma das peças-chave para criar o ambiente necessário à aprovação do processo de impeachment de Dilma Rousseff dez dias depois, pela Câmara dos Deputados.
O ministro relator do processo da "lava jato" no STF, Teori Zavascki, considerou que "a divulgação pública das conversas interceptadas da forma como ocorreu, imediata, sem levar em consideração que a prova sequer fora apropriada à sua única finalidade constitucional legítima, muito menos submetida a um contraditório mínimo". Houve, portanto, o reconhecimento de que a prova não teve por objetivo cumprir sua função processual, desviando-se de sua finalidade, qual seja, a de permitir a formação do convencimento do juiz acerca dos fatos do processo. O juiz da causa afirma de modo expresso que utiliza a prova para “escrutínio público”, ou seja, não para firmar o próprio convencimento, mas o convencimento da opinião pública. A opinião pública, de outro lado, teve acesso às provas não na sua inteireza e mediante o contraditório, mas por meio de uma apresentação parcial e descontextualizada dos fatos, isenta de qualquer imparcialidade.
O segundo episódio selecionado diz respeito à decisão liminar do juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, que sustou a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil “ou qualquer outro que lhe outorgue prerrogativa de foro”.
O juiz afirma, peremptoriamente, que o ato administrativo de nomeação do ministro teria por objetivo a “intervenção indevida e odiosa” da presidente da República na atividade policial e judiciária, objetivando o deslocamento de competências, sendo que “este seria o único ou principal móvel da atuação da mandatária”. Na decisão de meras duas páginas, o juiz não cogita outras motivações para o ato administrativo, nem mesmo a de que a nomeação teria por objetivo o trânsito do ex-presidente junto ao Congresso Nacional para articular politicamente o travamento do processo de impeachment. Em nenhum momento da sintética decisão, há menção a qualquer situação de fato que embase seu fundamento. Não há menção a nenhum meio de prova. Exige-se dos jurisdicionados e dos cidadãos em geral que adivinhem em que fatos jurídicos subsumir-se-ia a decisão. Em verdade, quase se exige que a decisão seja complementada pelas manchetes do jornal do dia, formando com elas um todo indivisível. Aliás, de fato, a própria decisão tornou-se manchete de todos os jornais.
O que poderia explicar uma decisão fundamentada sem alusão a qualquer fato jurídico? A resposta mais provável não está nos autos, mas na página pessoal do juiz na rede social Facebook, que mostra um forte ativismo político na causa do impeachment, presente em atos e passeatas a favor do impedimento, publicando frases como “Fora, Dilma”, “Fora, PT” e “Se matarem [Lula], vira defunto” e outras publicações que não deixavam qualquer dúvida quanto ao comprometimento ideológico do juiz com questões ligadas à política nacional. Embora seja inegável que um juiz possa participar de atos cívicos e partilhar de opiniões políticas, é também inegável que a paixão ideológica sobre determinado tema não se coaduna com a posição de sujeito imparcial do processo.
O último episódio selecionado é o encontro entre o ministro do STF Gilmar Mendes e o presidente interino Michel Temer, ocorrido em 28 de maio, na residência oficial do último. A reunião não constava da agenda oficial do ministro, e os jornais apresentaram motivos diferentes para ela. Gilmar Mendes é o ministro relator do processo que deve julgar a prestação de contas da chapa Rousseff-Temer no TSE, e o encontro fora da agenda oficial do ministro causou estranheza. Gilmar Mendes é conhecido por suas críticas ao PT e por tornar públicos perante a mídia pronunciamentos acerca do governo petista.
Esses episódios, dentre tantos outros que poderiam também ser selecionados, demonstram o quanto o Judiciário colocou-se no centro da crise política que o país vive. Essa posição epicêntrica não seria necessariamente preocupante não fossem os indícios de ausência de imparcialidade da atividade judicial que os marcam, agravados diante das negociações políticas relativas ao aumento salarial da magistratura, que tiveram início dez dias após a aprovação do impeachment pela Câmara dos Deputados e que culminou com a aprovação de um pacote de ajustes salariais do funcionalismo pela base do governo interino, com impacto calculado na ordem de R$ 58 bilhões (num contexto em que se propõe a alteração da meta primária para um déficit de R$ 170 bilhões), sendo o de maior impacto justamente o dos salários dos ministros do STF, aumento que havia sido vetado por Dilma um ano antes.
Embora peças isoladas de um quebra-cabeças muito maior e complexo não permitam uma conclusão definitiva acerca do cenário em que nos encontramos, é possível afirmar que a imparcialidade pode ser legitimamente questionada diante dos indícios de sua ruptura ou relativização.
Igualmente, não é forçoso concluir que os episódios selecionados esbarrariam nas vedações do artigo 145 do novo Código de Processo Civil, que versa sobre a suspeição do juiz e que tratou do tema da imparcialidade de modo mais amplo e mais rígido do que o CPC anterior. As hipóteses de suspeição dizem respeito a situações menos graves de comprometimento da imparcialidade que, de todo modo, recomendam o afastamento do juiz em virtude de circunstâncias subjetivas que podem colocar em risco a capacidade de julgamento com isenção. Nos episódios envolvendo os juízes Moro e Catta Preta, poder-se-ia afirmar que motivos outros, que não os estritamente ligados à atividade processual (no primeiro caso, submeter o ato em julgamento ao “escrutínio público”, e, no segundo, as paixões políticas do magistrado) enquadrar-se-iam no inciso IV do dispositivo, ao manifestar interesse no julgamento do processo. No episódio envolvendo o ministro Gilmar Mendes, seria possível afirmar que a visita fora da agenda oficial tanto poderia ser indicativa de violação do inciso I (amizade entre juiz e parte) quanto do inciso II (aconselhamento da parte).
A indagação que daí decorre é se seria legítima por parte da sociedade civil a expectativa de que tais juízes se averbassem, eles mesmos, suspeitos para o julgamento dos casos em que atuam. Pensamos que sim, sobremodo diante de manifestações cada vez mais frequentes e intensas questionando o papel do Judiciário em meio à crise política para a qual ele é chamado a participar na qualidade de julgador. Parece-nos que nunca o Judiciário brasileiro teve sua capacidade de julgar tão posta à prova e que não constitui exagero afirmar que o Judiciário, ele mesmo, está também vivendo uma crise institucional e de credibilidade sem precedentes.
Não poderia ser diferente. Certo é que a imparcialidade não é um mero topos retórico, mas efetivamente um pressuposto processual de validade que condiciona a atividade jurisdicional.
Na era do declínio da imparcialidade em nome de um ativismo judicial midiático, não é demais lembrar uma das mais importantes noções de teoria geral do processo: o proprium da jurisdição é a imparcialidade, conforme clássica lição de Chiovenda. O que justifica o poder do Estado de dizer, em última instância e mediante uso da força, como devem as pessoas comportarem-se é o fato de que o Estado o faz impondo o direito ao caso concreto de modo isento. Se ao Estado fosse permitido impor comportamento sem observância do devido processo legal e sem garantia de um juiz natural e imparcial, estaríamos diante de um modelo de organização estatal de cunho autoritário, marcado pela resolução de conflitos mediante uso de força bruta.
Assim, não é demais afirmar que a imparcialidade é um divisor de águas entre modelos radicalmente distintos de Estado. Somente quando a imparcialidade é assegurada e efetivamente observada podemos dizer que a jurisdição cumpre seu proprium. Preocupam os riscos que um Judiciário ativista tem assumido em nome de conveniências de ocasião.
O grande risco, ao fim e ao cabo, é que o Poder Judiciário pátrio eleve, com a participação decisiva da mídia, à categoria de cláusula pétrea de seu ativismo a ideia de que estaria autorizado — sabe-se lá por quem! — a estabelecer quando lhe convier “uma pausa democrática para freio de arrumação”, conforme declarou o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, em plena semana de abertura do processo de impeachment. Em comprovação da associação entre juízes e mídia, os meios de comunicação salvacionistas não apenas deram ampla divulgação à declaração, como a elevaram à condição de verdade inquestionável. Judiciário e mídia, associados, declaram prescindir dos demais poderes, sobretudo daquele ao qual a Constituição afirma ser de onde todo o poder emana. O povo tem para eles a mera serventia de se permitir ser objeto de suas causas. A tragédia-farsa se completaria com a concretização do golpe midiático-parlamentar-judiciário, incluindo a possibilidade de suspensão das liberdades mais essenciais nos moldes do AI-5, quando se justificasse o uso para conter os ânimos sociais, uma vez findo o período de interinidade. Trata-se do pior dos mundos, pois governado nas sombras por juízes e mídia que pretendem dispensar a política como condição da vida em sociedade.
A tragédia em que nos vemos metidos é mais profunda: não deixamos de ser uma jovem democracia latino-americana nominal, dominada por juízes e mídia salvacionistas e representada por parlamentares atrasados, espúrios e comprometidos com as trevas religiosas, como pudemos aferir na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a abertura do processo de impeachment. A exposição dessa tragédia conduz-nos à certeza de que não podemos prescindir da luta política pela eleição de representantes em sua maioria responsáveis, honestos e comprometidos com as questões que nos dizem respeito.
Jayme Benvenuto é professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
Liana Cirne Lins é professora na Universidade Federal de Pernambuco.

Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2016, 7h32
http://www.conjur.com.br/2016-jun-21/declinio-imparcialidade-ativismo-judicial-midiatico?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Prostituição é ato lícito e o Superior Tribunal de Justiça reconheceu isso


Prostituição é ato lícito. Há muito vimos defendendo esse ponto de vista, que culminou com a publicação da nossa obra Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Sempre consideramos importante levar em consideração, para a formação dos tipos penais incriminadores, a moral, a ética e os bons costumes. São eles a fonte de inspiração para o legislador em muitas hipóteses. No entanto, esses elementos também se atualizam, modernizam-se, mudam de figura e galgam outros patamares. Não é mais momento histórico, por exemplo, para falar de bons costumes no contexto da dignidade sexual — aliás, este é o novo título do capítulo do Código Penal que cuida desses crimes. A bem da verdade, os famosos bons costumes eram atribuídos somente às mulheres; o recato sexual havia de ser da mulher; quem deveria casar-se virgem, sob pena de anulação do matrimônio (CC, 1916; CP, antes da reforma de 2005) era a mulher. O homem poderia ser promíscuo e quanto mais garanhão fosse, mais conceito social obtinha.
Em épocas passadas (e possivelmente ainda hoje), os jovens eram levados por seus próprios pais, parentes e amigos mais velhos a iniciar a sua vida sexual com prostitutas. “Trate-o com carinho”, dizia o pai. Tudo para mostrar à sociedade que estava criando um macho em casa e também para não traumatizá-lo em sua primeira relação sexual. Enfim, um mundo machista.
A prostituta sempre foi útil para vários aspectos, mas recriminada pelos moralistas de plantão. Ora, o que importa a você se o seu vizinho é garoto de programa? Ou se a sua vizinha é acompanhante? A menos que conturbe sua vida, haja barulho, problemas no condomínio, abusos etc., não lhe afeta a vida, a não ser o seu pensamento, a respeito daquela conduta: o seu julgamento moral.
Diante disso, acompanhando a modernização dos costumes, vários países de Primeiro Mundo já legalizaram a prostituição, reconhecendo-a como profissão e dando-lhe as garantias devidas. O profissional do sexo sofre a fiscalização sanitária do Estado e nada é feito às escuras. Nem se deve falar dos países de Terceiro (ou mais baixo) Mundo, que ainda estão na fase de apedrejar, até a morte, a adúltera (assim como a prostituta).
Os Estados Unidos são o único país hipócrita nesse campo, pois criminaliza, em vários Estados, até mesmo a prostituição individual; ao mesmo tempo em que um candidato à presidência da República prega a construção de um muro da vergonha entre seu país e o México. Os EUA reconhecem a união estável, o casamento e o direito de adotar, por homossexuais, mas demonizam a prostituição, que acontece aos milhares de casos, sem a devida atuação estatal para coibi-la. Noutros termos, usa-se a prostituição (como crime) como moeda de troca (pode-se prender uma prostituta se ela não disser o que o policial quer saber, já que ela vive nas ruas). Idiossincrasias de uma sociedade que ainda não decidiu se quer mesmo ser livre ou atrelada a valores religiosos.
O Brasil continua no sua eterna posição de indefinição: a prostituição individual não é crime, mas também não era considerada, pelo lado civil, um ato lícito; o agenciamento da prostituição continua a ser crime, mas diversos sites promovem abertamente a atividade (vide o artigo 228, CP), ganhando muito com isso, e nada é feito; o Ministério do Trabalho regulamentou a profissão: profissional do sexo, dando-lhe um código para recolhimento da contribuição previdenciária (também não estariafavorecendo a prostituição?). Mas, continua-se a viver o impasse: a casa onde se dá o sexo pago é reduto criminoso. Ora, preferem as pessoas de bem que o sexo — que não será detido, porque nunca foi como demonstra a História — seja feito no meio da rua? Em carros, sob viadutos?
Muitos moradores de bairros nobres queixam-se de travestis fazendo ponto na frente das suas casas. Com razão. Porém, se houvesse um lugar apropriado e lícito, eles sairiam da rua. Por que passar frio? Por que sofrer humilhação? Por que ser extorquido por policiais para fazer sexo de graça? Por que optar pelo inferno se há possibilidade de um lugar protegido e oculto das famílias de bem para o sexo pago?
Em suma, em decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da 6ª Turma, no dia 17 de maio próximo passado, no HC 211.888/TO, cujo relator foi o ministro Rogério Schietti Cruz, em votação unânime, considerouato lícito a prostituição. Aliás, foi a mesma posição do juiz de primeiro grau e do Tribunal de Justiça do Tocantins. Inconformado, o Ministério Público entrou com recurso especial, que foi rejeitado e declarada extinta a punibilidade da paciente, por habeas corpus de ofício.
Em síntese, a profissional do sexo não foi paga pelo seu serviço. Tomou do cliente uma cordão com pingente folheado, usando uma faca para garantir a posse do bem, até que fosse paga. O MP acusou-a de roubo impróprio. Todas as instâncias do Judiciário desclassificaram a infração para exercício arbitrário das próprias razões (artigo 345, CP).
Correta a decisão, sob o nosso ponto de vista. Aliás, foi citada a minha obraProstituição, lenocínio e tráfico de pessoas, para justificar exatamente isso. Se o cliente não quer pagar e algo lhe é tomado para garantir esse pagamento, cuida-se de exercício arbitrário das próprias razões, mas não de roubo ou furto.
O eminente ministro promoveu, ainda, outras considerações doutrinárias, afirmando que “o direito penal, como é sabido, foi construído doutrinária e jurisprudencialmente no Brasil sobre o pilar da vontade do agente, do que se passa em sua mente no momento da prática do delito, enfim, da real intenção do autor” (grifos no original).
O programa, nesse caso concreto, custou R$ 15 e, mesmo assim, o cliente não quis pagar. Como uma pessoa de parcos recursos, como a profissional do sexo, nesse caso, que nem conhece a identidade do seu cliente, vai cobrá-lo? No Juizado Especial Cível? Não. Na visão do Ministério Público, tratou-se de um roubo. O cliente usufruiu do programa, recusou-se a pagar ínfima quantia e ainda deveria ser a profissional do sexo apenada com reclusão de, pelo menos, 5 anos e 4 meses (?!).  Se isso é justiça, não se pode mais tomar nada por justo, a não ser de forma discricionária. Se o Ministério Público, em todo o Brasil, vem lutando contra a corrupção generalizada, de valores astronômicos, atingindo bilhões de reais, com enorme dificuldade, como se pode pedir uma pena de mais de cinco anos de cadeia para uma pessoa, que prestou o serviço (não negado em momento algum), e não recebeu, enquanto corruptos saem condenados a dois anos de reclusão, com benefícios, por desvios muito maiores? Para a reflexão do leitor.
Antigamente, diziam os civilistas que a dívida de prostituição (como a de jogo) não poderia ser cobrada judicialmente, pois feria a moral e os bons costumes. Esperamos que essa visão já tenha mudado, pois, do contrário, como bem disse o ministro Rogério Schietti Cruz, está o Estado se intrometendo na “liberdade de autodeterminação sexual de adultos”.
Quanto mais legalizada e visível a prostituição, maior proteção pode ser conferida a quem realmente dela necessita: crianças e adolescentes. A prostituição juvenil é uma marca em nosso país, com o turismo sexual. Mas chamar a prostituição de adultos um ato ilícito é fugir à realidade.
Se assim for, deve o Ministério Público intrometer-se, também, nas relações sexuais violentas (sádico-masoquistas), que podem até deixar, como resultado, lesões graves. Seria muito interessante tomar conhecimento de uma denúncia contra alguém que escravizou outrem para fins sexuais, deixando o(a) parceiro(a) marcado(a) com golpes de chicote e impedindo-o(a) de exercer suas funções por mais de 30 dias. Dois adultos em sexo consensual; sem falar em prostituição, podendo até ser casados. Teria o Estado legitimidade suficiente para se imiscuir na intimidade desse casal? Também para o leitor refletir, afinal, a lesão grave é de ação pública incondicionada.
Em nosso entendimento, somente se pode elogiar a decisão do Superior Tribunal de Justiça (HC 211.888-TO, 6ª Turma, rel. Rogério Schietti Cruz, 17.05.2016, v. u.). 
*Texto alterado às 15h21 do dia 31/5 para correção.

Guilherme Nucci é desembargador em São Paulo. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Processo Penal.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-mai-30/guilherme-nucci-prostituicao-ato-licito-stj-reconheceu-isso