quarta-feira, 29 de abril de 2009

Poesia

Drummond já em fim de vida.


Este poema foi retirado do Sentimento do Mundo, livro que, na verdade, contém três livros: Alguma poesia de 30 e a qual pertence o poema extraído; Brejo das Almas de 34; e, por último, Sentimento do Mundo de 40.

O poema é dedicado a Cyro dos Anjos, um sutil e lírico romancista também da geração de 30, que escreveu O amanuense* Belmiro, em 37.

*Amanuense: Funcionário público de condição modesta.

Ei-lo:
O sobrevivente

C. Drummond de Andrade

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a "O Jornal" que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura.
Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)
VIVA O DRUMMOND!