quarta-feira, 7 de abril de 2010

Rio: Terra arrasada

A história pluviométrica da cidade do Rio de Janeiro nunca registrou algo parecido como essas chuvas dos últimos dias. Para se ter uma ideia, no mês de março do ano passado choveu 110 mm; a deste mesmo mês foi de 320 mm.

A tempestade recorde isolou áreas da capital, deixando diversos moradores ilhados em: escritórios, carros e ônibus, pontos de ônibus, escolas, comércios e demais lugares onde as pessoas estavam. Faltou luz em 13 bairros. 2.510 pessoas ficaram desalojadas. 120 pessoas já morreram - a maioria dessas ocupavam encostas com risco de desmoronar - até a conclusão deste post.

A área mais castigada foi decerto o Morro dos Prazeres, com 14 mortes. Mas outras comunidades e bairros como o Morro dos Macacos, Taquara São Cristóvão, Ladeira dos Guararapes, Borel, Olaria, São Gonçalo e Niterói também tiveram tragédias com feridos, mortes e muitos desabrigados.

Em Mangueira, a quadra da escola virou abrigo para os que perderam tudo. Repórteres do Jornal da Globo mostraram o pessoal da escola fazendo dos camarotes pequenas salas para guardar mantimentos, colchões e roupas que chegam de doação. Veja reportagem sobre e depois a coluna do Ruy Castro na Folha de hoje.

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RUY CASTRO

Dívida cruel

RIO DE JANEIRO - "O que teremos de pagar por tanta beleza?", perguntou o poeta Ezra Pound a respeito de Veneza. Pound, que morou e morreu por lá, sabia a resposta: há "acqua alta", a água que sobe um pouco todo ano, há séculos, e, um dia -até 2100, dizem os apocalípticos-, acabará por submergir a cidade. Nesse caso, Veneza estará pagando pela ousadia de seus arquitetos de construir uma cidade que, na sua imodéstia, podia competir com a inspiração divina.

Mas, no caso do Rio, a beleza se originou dessa própria inspiração dita divina. Ou terão sido os homens os responsáveis pelo recorte da baía, o gigante de pedra, o traçado das areias, a onipresença do verde? E, sendo assim, por que teríamos de pagar? A não ser que fosse por isso mesmo -porque, embora não soubéssemos, previa-se uma espécie de pedágio pelos séculos em que tivemos o Rio para nós.

Pode ser também que nosso crime seja o de não termos cuidado dessa beleza como deveríamos. Fomos soberbos com suas matas e imprevidentes com suas encostas, impermeabilizamos seu chão e aprisionamos suas águas. Por que o Rio, que, nos séculos 17 e 18, tomou brejos, pântanos e alagadiços, não consegue conter a água que cai do céu? Mas, também nesse caso, por que a culpa acumulada durante várias gerações teria de ser expiada justamente na nossa vez?

Há cem anos se sabe que inundações são inexoráveis na zona do Maracanã, na lagoa Rodrigo de Freitas, no Jardim Botânico. Em jovem, eu próprio já atravessei a praça da Bandeira e os largos da Lapa e do Machado com água pela cintura. E a cidade, que começou a subir os morros em 1565, não se preparou para quando os morros resolvessem deslizar em direção à ela.

Apenas no último meio século, tivemos 1966, 1967, 1988, 1996 e, agora, 2010. Chega de pagar.


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