sábado, 24 de abril de 2010

Entrevista com o mito Sr. Monarco da Portela

Vai aqui uma entrevista cedida pelo Monarco da Portela, um dos grandes compositores da Azul e Branco, para a revista Aventuras na História (edição 42).


Compositor desde os anos 40, Monarco é uma enciclopédia. Coleciona histórias: limpou a mesa de bilhar de Villa-Lobos, guardou carros no Jornal do Brasil, dividiu (vários) conhaques com Cartola, compôs com Candeia, ouviu lamentos de Carlos Cachaça, grande companheiro de Noel Rosa.
Atualmente, ele se dedica às caminhadas matinais - “momentos de maior inspiração” -, à sua mulher - “minha pretinha de fé” -, a compor vez por outra e a exercitar a memória, lembrando-se de sambas que são verdadeiras relíquias, não escritos em lugar algum.

Hildemar Diniz é um homem alinhado. Veste camisa social impecável, calça de tergal bem passada, cinto combinando com o sapato branco. Toda quinta-feira ele sai do Riachuelo, bairro na zona norte do Rio de Janeiro, onde mora com a mulher Olinda, para almoçar um belo cozido na Cinelândia, no centro, acompanhado de pelo menos um de seus filhos. São dois: Mauro e Marcos.
Como o pai, compositor, a dupla tem canções nas vozes de Zeca Pagodinho e Marisa Monte. “Eles já nasceram numa roda de samba”, diz o músico, alisando os cabelos finamente penteados.


Hildemar é o sambista Monarco da Portela, apelido que ganhou na infância em Nova Iguaçu. Aos 73 anos, ele é um dos compositores mais respeitados do chamado samba de morro, batida tocada pelas escolas que desfilam no Sambódromo. De sua caneta já saíram sucessos cantados por Martinho da Vila (”Tudo Menos Amor”), Clara Nunes (”Rancho da Primavera”), Paulinho da Viola (”Passado de Glória”) e muitos outros.

Sua memória rendeu a Marisa Monte o sucesso “Meu Canário”, de Jaime Silva, gravado no CD Universo ao Meu Redor. “Fui na casa dela, lembrei que o Jaime tinha feito essa música e cantei.” Monarco gosta mesmo é de cantar. Assim, a entrevista que você vai ler a seguir foi toda musicada - para cada história, uma canção.

Como você conheceu o Cartola?
Ele era meu ídolo. Um dia, ele foi na Portela com Carlos Cachaça e eu fiquei de longe admirando. Tempos depois, nos encontramos no Zicartola, bar que ele abriu com a Zica, na rua da Carioca. Ele comandava a roda de samba. Um belo dia, fui lá e quiseram me barrar na porta. Alguém me viu e foi falar com Cartola. Ele veio e perguntou: “Quem é o Monarco?” Eu disse: “Sou eu”. Então ele me mandou entrar. Fiquei no camarim vendo ele ensaiar. Daí pra frente, ficamos amigos. Eu ia de vez em quando procurar ele e o Carlos Cachaça na Mangueira. Fiquei mais próximo do Carlos, pois o Cartola se mudou pra Jacarepaguá. Na Mangueira, ficávamos papeando, eu ouvia as histórias e aprendia as lições do menestrel.

O Candeia falava que o negro era marginalizado, não importava o que fizesse. Você concorda?
Ele cantava: “O crioulo do morro está no miserê. Vai procurar trabalho, não encontra, vai jogar baralho”. Mas é verdade. O Candeia morreu batendo nessa tecla. O samba do morro continua marginalizado. Não é mais como antigamente, claro, mas sempre derrubam a gente. Dizem que nosso samba não é comercial, não vende, só se faz em barracão. Eles dão uma colherzinha de chá no Carnaval. Mas passa o Carnaval, esquecem a rapaziada do morro. A gente nem liga pra isso. Eu tenho samba que todo mundo canta e que nunca tocou no rádio.

História - A malandragem ainda faz parte do samba?
Monarco - Ah, não. Olha, para mulher não tem mais malandro, não. Tem que tratar a mulher bem. Eu já perdi uma grande mulher em minha vida por causa disso, por não conservar. Hoje tenho minha mulher e conservo com o maior carinho - a Olinda, minha pretinha de fé. Eu falo pretinha, mas ela é mulatinha. O malandro, minha filha, se aposentou, perdeu a viagem.
Vinícius de Moraes chegou a brincar uma vez, dizendo: “O que seria dos compositores sem a dor-de-cotovelo, as desilusões amorosas?” É assim mesmo?
Às vezes vejo alguém sofrendo e transporto para mim. E faço como se estivesse acontecendo comigo. Se eu for esperar brigar com a minha mulher para fazer música, estou ferrado… Eu tenho um amigo que foi largado pela mulher. Ele vivia triste, chateado. Eu o levava pro pagode, pra festa, mas não adiantava. Chegava lá, ele ficava jururu. Aí eu fiz algo assim (canta): “Já não vou mais às festas para me divertir, já não sei mais cantar nem sorrir. Os amigos do peito estão preocupados com meu padecer. Quem ontem esbanjava alegria hoje não sente prazer. Ela foi embora sem olhar para trás, é sinal que não volta mais”. O Zeca (Pagodinho) botou mais um pedacinho nessa música. O Ratinho (Alcino Ferreira, compositor) apareceu e botou outro.

Como vem a inspiração?
Do nada. Sem marcar hora. Não sei sentar para fazer uma música. Às vezes passo até um ano sem fazer nada. E, no estalo de um segundo, faço um samba. Tem que fazer direito e deixar fluir espontaneamente. Pode ser no ônibus, caminhando, não importa. Olha, eu não sabia de uma coisa: caminhar de manhã cedo me dá inspiração. Já fiz muita música andando. Sabe, eu faço caminhada porque o médico mandou.


E a cervejinha, o médico deixa?
Ah, mas não bebo mais. Há 30 anos. Já bebi minha cota. Bebi bem. Parei porque fiquei doente, estive internado, com tuberculose. Quando saí do hospital, conversei com o médico sobre minha cervejinha. Ele disse: “Bebe, mas bebe pouco”. Daí eu falei: “Não sei beber pouco”. Então, resolvi parar. Agora meu fígado está tão feliz… (risos).


Tem samba sem cervejinha?
Cartola bebia muito, mas acho que Noel bebia mais. Da turma toda, o Carlos Cachaça era o rei, por isso ganhou esse nome. O Noel ia sempre pro Buraco Quente (uma comunidade do Rio) procurar o Cartola. Chegava lá e enfiava o pé na jaca. Já o Cartola tomava conhaque. Várias vezes bebi com ele nas madrugadas. Ele dizia: “Vamos tomar um conhaque antes de ir pra casa”.


Como você conheceu o Cartola?
Ele era meu ídolo. Um dia, ele foi na Portela com Carlos Cachaça e eu fiquei de longe admirando. Tempos depois, nos encontramos no Zicartola, bar que ele abriu com a Zica, na rua da Carioca. Ele comandava a roda de samba. Um belo dia, fui lá e quiseram me barrar na porta. Alguém me viu e foi falar com Cartola. Ele veio e perguntou: “Quem é o Monarco?” Eu disse: “Sou eu”. Então ele me mandou entrar. Fiquei no camarim vendo ele ensaiar. Daí pra frente, ficamos amigos. Eu ia de vez em quando procurar ele e o Carlos Cachaça na Mangueira. Fiquei mais próximo do Carlos, pois o Cartola se mudou pra Jacarepaguá. Na Mangueira, ficávamos papeando, eu ouvia as histórias e aprendia as lições do menestrel.


Você se lembra de algum episódio?
São tantos! O Cachaça contava coisas engraçadas… Que o Cartola gostava de mulher gorda (risos). Outra vez, Cartola disse a ele: “Você tem que me batizar”. O Carlos: “Ué, tu já é batizado, rapá”. Ele: “Dá um jeito, então me crisma”. Então, o padre crismou o Cartola. Ele estava “pesado”, sabe, sendo injustiçado pela cultura do país. Chegou a lavar carro em Ipanema, imagine. Só foi descoberto pelo (jornalista) Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Um homem cheio de sucesso, parceiro de Noel Rosa, lavando carro para sobreviver, vê se pode.


Isso já aconteceu com você?
Já. Eu guardei carro no estacionamento do Jornal do Brasil, nos anos 70. Antes, eu trabalhava no mercado de peixe, quando a maré estava brava. Aí um amigo arrumou para trabalhar no Jornal do Brasil. Ali era uma beleza. Estacionava o carro de todo mundo, dos jornalistas mais famosos. Foi nessa época que Martinho gravou uma música minha e comecei a fazer sucesso. Ele foi uma vez num ensaio da Portela, escutou um samba meu e gravou. Isso passou a ser meu cartão de visitas, outros artistas começaram a me pedir música, como Clara Nunes, João Nogueira. Então saí do jornal para fazer samba - acho que faço samba com mais perfeição, né? (risos)


Antes disso você também tinha trabalhado na ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Foi aí que você conheceu Villa-Lobos?
Ah, eu era menor de idade nessa época. Heitor Villa-Lobos jogava bilhar francês lá. E eu escovava as mesas. Quando eram 5 horas, 5 e meia, lá vinha ele. Eu escovava bem a mesa, passava flanela em volta e deixava prontinha. Ele chegava fumando aquele charuto que várias vezes eu fui comprar pra ele. Uma vez, eu cantei um samba do Manacéia (sambista da Portela) e o Nássara (cartunista e compositor) chamou ele para ouvir. O Nássara não jogava, ficava na galera assistindo. Eu cantei: “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil…” O Nássara disse: “Olha, esse samba é da Portela”. Villa-Lobos passou o giz no taco, ouviu e não disse nada, continuou a jogar.


Você sempre foi da Portela?
Desde menino. Nasci em Cavalcanti e me mudei para Nova Iguaçu. Lá eu já ouvia sambas da Aracy de Almeida, daquelas cantoras antigas. Ouvia Noel. Então, minha mãe se separou do meu pai e foi morar em Oswaldo Cruz - olha como o destino foi bom! Quando eu vi a placa com o nome, pensei: “É o lugar do samba do Noel Rosa!” (o bairro é citado na canção “Palpite Infeliz”, de 1935). Dali, já pulei para a Portela. Escutei falar o nome do Paulo da Portela (sambista que ajudou a fundar a escola) no rádio e fui descobrir onde ele morava. Como não tinha dinheiro para comprar fantasia, no começo, desfilava segurando a corda lateral. Fazia calo na mão, mas não largava. Depois, fui trabalhar, juntei dinheiro e saí numa ala, de terno e tudo. Isso foi em 1951. Em 1952, fiz meu primeiro samba e passei para a ala dos compositores. Tornei-me companheiro daqueles bambas que eu idolatrava. Eu e o Candeia. Acho que o homem lá de cima disse: “Não vou te dar dinheiro, mas vou te dar inspiração” (risos).


É verdade que há rivalidade entre Mangueira e Portela?
A Mangueira teve uma encrenca com a Portela, na década de 30. Logo depois, tudo foi contornado, principalmente por meio da amizade de Paulo da Portela com Cartola. Hoje as escolas são companheiras. Dizem que quando a Portela encostava na praça Onze, o Cartola falava: “Deixa eu ver o que o Paulo trouxe”. Ele vinha ver como estava, preocupava-se com a escola. E vice-versa. Eles faziam samba juntos. A amizade dos dois significava a amizade entre Mangueira e Portela. Tenho vários sambas que enaltecem a amizade das duas escolas (canta): “Por isso que Portela e Mangueira são as grandes pioneiras das escolas do Carnaval…” Este chama-se “Velhas Companheiras” e fala dessa amizade.


Você costuma dizer que seu samba é chamado de samba de terreiro, diferente do samba de asfalto. Como eles se diferem?
O de terreiro é aquele de escola de samba. É o que eu aprendi, o que faço até hoje. Nosso samba não tem agrotóxico, não… (risos). A turma do Estácio começou, a Portela e a Mangueira foram lá e continuaram. E inspiraram vários compositores do asfalto também, como Ary Barroso, Erivelton Martins, Ataulfo Alves, Noel.
O Candeia falava que o negro era marginalizado, não importava o que fizesse. Você concorda?
Ele cantava: “O crioulo do morro está no miserê. Vai procurar trabalho, não encontra, vai jogar baralho”. Mas é verdade. O Candeia morreu batendo nessa tecla. O samba do morro continua marginalizado. Não é mais como antigamente, claro, mas sempre derrubam a gente. Dizem que nosso samba não é comercial, não vende, só se faz em barracão. Eles dão uma colherzinha de chá no Carnaval. Mas passa o Carnaval, esquecem a rapaziada do morro. A gente nem liga pra isso. Eu tenho samba que todo mundo canta e que nunca tocou no rádio.


Como ficaram as escolas de samba depois que o jogo do bicho passou a ter uma participação mais retraída?
O pessoal da contravenção gosta do samba, foi criado perto. Veio para ajudar, organizar. A liga hoje é organizada. A Portela tem 5 mil pessoas e tinha 200. As escolas cresceram. Eles são muito bem-vindos ao nosso reduto. Não saíram, estão todos ali.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vozes da Informação - uma amostra


Vozes da Informação é um novo programa do Canal Brasil. Aliás, não posso deixar de comentar e parabenizar o sucesso do canal, graças às atitutes corajosas de jovens roteiristas que chegaram à casa.

O que antes era apenas um canal em que se passava filmes brasileiros esquecidos, agora abre as portas para artistas e jovens diretores desenvolverem ideias bem interessantes e com baixo orçamento. Alguns exemplos de programas que confirmam o que digo: O som do Vinil, do baterista do Titãs Charles Gavin; Larica Total, engraçadíssimo, sobre culinária a baixo custo para homens solteiros; O Estranho Mundo de Zé do Caixão, talk-show do cineasta José Mojica Marins. E os que ainda irão estrear, como uma mesa redonda de artistas com degustação de águas, e também um reality show de celebridades bem na hora em que vão dormir (acho que se chama Celebrity sono TV).

Neste post, um programa bem menos ousado que esses que acabo de citar, mas com nível de conhecimento elevado. Eis o perfil do programa:
"Os bastidores da imprensa ganham as telas do programa, um bate-papo sem censura com os mais renomados jornalistas brasileiros. Em pauta, histórias, curiosidades e os desafios de uma profissão que, matéria-a-matéria, precisa se reinventar todos os dias." - do site do Canal Brasil. A direção é de Jorge Brennand Jr.

Confira dois depoimentos de consagrados jornalistas para o Vozes:

Tárik de Souza
O jornalista fala sobre as ditaduras de ontem e hoje, a falta de melhora da imprensa nos últimos tempos e a relação entre crítica musical e venda de álbuns, entre outros temas.



Sérgio Cabral
O jornalista comenta a exigência de diploma para exercer a profissão, a atuação como crítico musical e a tradicional prática do "jabá".

Entrevista com o dono do Estante

A revista Língua Portuguesa (Editora Segmento) #53, do mês passado, fez uma entrevista com o criador do maior portal de sebos do Brasil, André Garcia, de 31 anos.


Segue:


A cultura dos sebos

Criador do portal Estante Virtual diz que os alfarrábios superaram as livrarias como estimuladores de leitura no Brasil e viraram reserva cultural da memória literária brasileira

Luiz Costa Pereira Junior


O administrador André Garcia tinha 26 anos quando abandonou uma promissora carreira na área de inteligência de mercado em operadoras de celular, no Rio. Estava farto do mundo corporativo. Na dúvida do rumo a seguir, buscou a vida acadêmica. Mas, ao procurar livros para um mestrado, notou uma lacuna no mercado que mudaria sua trajetória.

Garcia não achava os títulos que queria em bibliotecas e livrarias, perdia-se nos sebos e na falta de oferta de usados na internet. Veio então o estalo. Em um ano, lançou o Estante Virtual, portal de compra de livros usados, que completa quatro anos com 1.670 sebos, com 22 milhões de obras reunidas.

Aos 31 anos, Garcia comanda um negócio que vende 5 mil livros diários, em 300 mil buscas (12 buscas por segundo em horário de pico). Para ele, os sebos devem ser valorizados como agentes de democratização da leitura. "Ela tem de estimular a imaginação e a reflexão.

Qualquer leitura não é leitura", diz com a autoridade conquistada pelo sucesso da iniciativa inédita de intermediação. Garcia diz ser um erro achar que só à escola cabe estimular a leitura. É desafio do país, afirma, fazê-la vista como prazer. O Estante Virtual quer provar que até uma iniciativa de negócio pode fazer a sua parte.

O brasileiro não gosta de ler ou não compra livros por achar muito caro?Os dois. Há muita gente que poderia gostar e não gosta, mas há ainda mais gente disponível à leitura se o livro fosse barato. Para quem não gosta de ler, há a razão educacional: a escola ensina a não gostar, usa uma metodologia que tem êxito inverso. Temos uma base pedagógica em que ler é obrigatório e a biblioteca é vista como lugar de castigo. Mas leitura é subjetividade, é ver o que agrada à sensibilidade e se ajusta à sua forma de ser, ao seu momento. A escola nunca me deu esse espaço e duvido que, salvo exceção, garanta isso a muito aluno. Para os que driblam a escola e aprendem a gostar de ler, há um preço alto a ser encarado. Se você considerar só a lista dos dez mais vendidos, a média é de R$ 43 o exemplar. Lê esses livros quem tem mais recurso.

Muitos acham que best-seller estimula a leitura.Tudo bem, o cara lê 800 páginas de Harry Potter. Mas esse tipo de livro leva mesmo a outra leitura que não seja a mais coisa parecida com Harry Potter? Outro dia, um membro da Câmara Brasileira do Livro disse num evento que se o brasileiro ler bula de remédio, ou revista de fofoca, já está ótimo. Na minha opinião, isso é só tecnicamente leitura. A leitura tem de estimular a imaginação e a reflexão. Qualquer leitura não é leitura.

O livro pode virar fator de exclusão social?Sem estímulo à escolha, sim. Há essa segmentação, em que uma minoria de livros é bem mais apresentada que todo o resto. A leitura termina aberta a um universo restrito de não mais que uns vinte livros. Uma derrota para a cultura. As pessoas leem só isso? O.K., melhor que não ler. Mas é um quadro de pauperização preocupante. Não basta democratizar a leitura. É preciso democratizar os autores de qualidade.

Daí o papel dos sebos...
Drummond tem uma crônica, O Sebo, em que diz que o sebo é o verdadeiro templo da democracia literária. As livrarias se concentram nos 20% de produtos responsáveis por 80% das vendas. Fazem isso não porque são "malvadas", mas por não haver espaço para tudo. Não há como dar vazão a 1.500 títulos novos todo mês, 52 por dia, fora as reedições. Já o sebo virou uma reserva cultural. Nele, há os de agora, os de antes, os fora de catálogo. Estamos falando da história editorial do país, não só dos livros do momento.

Muitos evitam sebos pela poeira e desordem, não é?Quem vê o sebo como o lugar de obras raras ou esgotadas deixa de usufruir o que ele tem a oferecer, pois trabalha com livro novo, seminovo ou em edição. À medida que as livrarias priorizaram os mais vendidos, os sebos viram que a demanda por eles cresceu. Boa parte se modernizou, está organizada. Os sebos com bagunça, obras empilhadas, empoeiradas, hoje são minoria.

Mas esse "preconceito" não impediu o avanço...
Se livro não fosse tão caro, sebos não teriam o papel que têm no Brasil. Em Portugal, os alfarrábios são só para obras raras e esgotadas, mesmo. Não se vai a um sebo português para comprar um novo Lobo Antunes ou Saramago, pois a loja não terá. Terá o exemplar raro, o autografado, a edição há muito esgotada. Aqui não, o sebo tem tudo, e o que a livraria de novos não tem mais, pois se concentrou nos mais vendidos e nos lançamentos recentes.

Qual o tamanho real desse mercado?
O Brasil tem hoje 1.800 livrarias em meio a 2.300 pontos de venda de livros. A estimativa de sebos é de 2 mil pontos de livros usados no país, 1.670 dos quais estão no Estante Virtual. Deste número, metade é de lojas de rua e a outra metade, de virtuais.

Quem toca esses virtuais?
Em geral, ex-professores, intelectuais aposentados, com muitos livros em casa, que ampliam o acervo e vendem. A gênese desse mercado ocorreu conosco. Antes, ia-se ao Mercado Livre ou montavam um blog, mas sem movimentação, pois ficavam perdidos na rede.
E aí surgiu o Estante.

E aí surgiu o Estante.
Atuava na área de inteligência em operadoras de celular, mapeando mercados, mas cansei da hipercompetição, dos valores focados em maximizar lucros, das relações pessoais pouco saudáveis nas empresas e de brigar com concorrentes por um produto que era, de fato, igual ao deles. Chutei o balde, queria virar professor e me preparei para um mestrado em Psicologia Social na PUC-SP. Procurei livros para estudar quando veio o estalo.
Criar o lugar dos sebos...

Eu ia a bibliotecas e livrarias, e não achava o que queria. Nos sebos, vi uma forma de busca elementar. Olhava as lombadas, umas com as letras subindo; outras, descendo; mesmo com paciência, não achava. Vi, então, que o sebo era mais um lugar para deixar o livro encontrar você do que encontrar o livro que de antemão se deseja. É lugar de garimpagem, não busca. Fui à internet e só achei uns seis sites de sebos. Todos caros. Aquilo me chamou a atenção. Pelo desperdício de um acervo inalcançável - o cliente não conseguia uma mera busca. Eu me perguntei porque só uma elite de sebos estava na rede. Mas sabia a resposta: montar um site com acervo e sistema de busca não é barato, uns R$ 5 mil à época. Minha ideia era resolver a procura e criar uma vitrine para sebos sem visibilidade.

O início foi difícil?No um ano que levou para preparar o site, mapeei o mercado. No final de 2005, quando lancei o Estante, contávamos com 68 sebos. Hoje temos 600 mil clientes a quem vendemos 5 mil livros ao dia. É mais do que as lojas de rua da Travessa, rede tradicional do Rio, ou do serviço on-line da Cultura, de São Paulo. Não vendemos o livro diretamente, fazemos a intermediação entre o livreiro e o comprador. A cada mil livros on-line, cada sebo fatura em média R$ 600 mensais.

Que livro é procurado?
Literatura estrangeira e brasileira, uns 20% e uns 15% da procura cada, o resto é pulverizado. O livro mais vendido é Vidas Secas, do Graciliano Ramos, que não chega a 900 cópias vendidos. É pouco, claro. No Estante, a venda é pulverizada, não há a discrepância das livrarias, em que um livro dispara milhares de cópias e o 50º mais vendido não passa de dezenas de exemplares. Nos sebos, não. O consumo é bem mais equilibrado. Considero isso uma vitória deles, que têm acervos diversificados e servem a todo gosto, não a um ou outro autor, editora ou tipo de leitura.

Tecnologias como kindle tornarão o sebo obsoleto?

Se livro impresso é caro, imagine depender de um intermediário de leitura que custa bem mais. Sebos atuam em nicho inverso, o de pessoas que querem uma leitura mais barata.

Para além da venda, a internet estimula a leitura?
Autores que não conseguem editora escoam sua produção em blogs. Nessa hora, a internet ajuda a ler e a criar. Mas o gênero mais lido da rede é o jornalístico, leitura informacional, utilitária, não uma ordem de leitura, digamos, mais preciosa. A internet atrapalha, de fato, quando a ênfase da leitura é nos simulacros de interação, como orkut, MSN, Twitter. Eu me pergunto se essas são reais formas de interação, se as comunidades interagem como comunidade. No Orkut, são muito usadas como decalque para a pessoa inserir em seu perfil. Não há convivência genuína.

Não é julgamento severo?
Não podemos apenas rejeitar essa interação, mas não se deve só endossá-la. Pois podemos virar a civilização dos simulacros de interação e dos protótipos de leitura. A escola precisa mostrar que ler dá prazer e nem tudo é interação genuína. Dizem que, como os tempos são dinâmicos, as pessoas não param para ler, daí ser preciso coisas mais dinâmicas, com jogos e tal. É desistir cedo demais. É preciso opor alguma resistência a essa temporalidade imediata.

O problema é a educação.
Não é só a educação. Há um grau de precarização da vida contemporânea, da mente ocupada o tempo inteiro, o dia todo tomado, sem tantas zonas de pausa, tudo se junta para o sujeito chegar em casa e não ter energia para ler. Exercitar a imaginação dá trabalho. O sistema de vida que levamos não facilita. A leitura está condicionada a fatores que talvez não consigamos de fato mudar. Não será só a escola a ser obstáculo, mas mudá-la é um começo.

Como estimular a leitura, nesse contexto?
De cara, a escolha do que ler, o processo da leitura, deve dizer algo ao leitor. Damos um sinal errado ao aluno ou filho quando o fazemos ler só para fazer prova. Quando perguntamos o que o personagem falou ou fez, só para saber se houve leitura por parte do garoto. Ler não é isso. Tem de haver prazer envolvido. Devemos nos opor a certos dogmas intelectuais, de que os clássicos devem ser venerados sem restrições, os livros precisam ser lidos até o final etc. Por mim, começaria as primeiras séries proibindo provas sobre não didáticos. Se o garoto não ler, pior pra ele. Mas não se deve puni-lo. Senão, começa a odiar. A ver o tempo na biblioteca como castigo. Isso não forma leitores, só os afasta.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Rio: Terra arrasada

A história pluviométrica da cidade do Rio de Janeiro nunca registrou algo parecido como essas chuvas dos últimos dias. Para se ter uma ideia, no mês de março do ano passado choveu 110 mm; a deste mesmo mês foi de 320 mm.

A tempestade recorde isolou áreas da capital, deixando diversos moradores ilhados em: escritórios, carros e ônibus, pontos de ônibus, escolas, comércios e demais lugares onde as pessoas estavam. Faltou luz em 13 bairros. 2.510 pessoas ficaram desalojadas. 120 pessoas já morreram - a maioria dessas ocupavam encostas com risco de desmoronar - até a conclusão deste post.

A área mais castigada foi decerto o Morro dos Prazeres, com 14 mortes. Mas outras comunidades e bairros como o Morro dos Macacos, Taquara São Cristóvão, Ladeira dos Guararapes, Borel, Olaria, São Gonçalo e Niterói também tiveram tragédias com feridos, mortes e muitos desabrigados.

Em Mangueira, a quadra da escola virou abrigo para os que perderam tudo. Repórteres do Jornal da Globo mostraram o pessoal da escola fazendo dos camarotes pequenas salas para guardar mantimentos, colchões e roupas que chegam de doação. Veja reportagem sobre e depois a coluna do Ruy Castro na Folha de hoje.

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RUY CASTRO

Dívida cruel

RIO DE JANEIRO - "O que teremos de pagar por tanta beleza?", perguntou o poeta Ezra Pound a respeito de Veneza. Pound, que morou e morreu por lá, sabia a resposta: há "acqua alta", a água que sobe um pouco todo ano, há séculos, e, um dia -até 2100, dizem os apocalípticos-, acabará por submergir a cidade. Nesse caso, Veneza estará pagando pela ousadia de seus arquitetos de construir uma cidade que, na sua imodéstia, podia competir com a inspiração divina.

Mas, no caso do Rio, a beleza se originou dessa própria inspiração dita divina. Ou terão sido os homens os responsáveis pelo recorte da baía, o gigante de pedra, o traçado das areias, a onipresença do verde? E, sendo assim, por que teríamos de pagar? A não ser que fosse por isso mesmo -porque, embora não soubéssemos, previa-se uma espécie de pedágio pelos séculos em que tivemos o Rio para nós.

Pode ser também que nosso crime seja o de não termos cuidado dessa beleza como deveríamos. Fomos soberbos com suas matas e imprevidentes com suas encostas, impermeabilizamos seu chão e aprisionamos suas águas. Por que o Rio, que, nos séculos 17 e 18, tomou brejos, pântanos e alagadiços, não consegue conter a água que cai do céu? Mas, também nesse caso, por que a culpa acumulada durante várias gerações teria de ser expiada justamente na nossa vez?

Há cem anos se sabe que inundações são inexoráveis na zona do Maracanã, na lagoa Rodrigo de Freitas, no Jardim Botânico. Em jovem, eu próprio já atravessei a praça da Bandeira e os largos da Lapa e do Machado com água pela cintura. E a cidade, que começou a subir os morros em 1565, não se preparou para quando os morros resolvessem deslizar em direção à ela.

Apenas no último meio século, tivemos 1966, 1967, 1988, 1996 e, agora, 2010. Chega de pagar.