domingo, 11 de dezembro de 2016

Guilherme Nucci: Segurança pública: um dever de todos

Sentir-se seguro significa estar confortável, livre de preocupações, envolto na sensação de bem-estar. Não por acaso, o termo segurança foi adicionado a outros, fazendo nascer a segurança jurídica (ter o cidadão a certeza de que o Estado não poderá prejudicá-lo sem lei, nem voltar-se contra o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada), a segurança material (ter o cidadão a garantia de não ser agredido de qualquer forma) e a segurança pública (contar a sociedade com a paz social).
De todo modo, o artigo 144 da Constituição Federal é bem claro ao enunciar: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (grifamos). Diante disso, algumas conclusões podem ser extraídas: a) no caput do artigo 5º, o termo segurança diz respeito à segurança individual, como explicitado acima no contexto da segurança jurídica; b) a segurança pública não é direito individual, pois é direito de toda a sociedade; c) a segurança pública conta, não somente com agentes públicos, mas com todos os cidadãos para que se concretize satisfatoriamente.
Ainda, ratificando o conceito de segurança jurídica, inserido no artigo 5º, caput, da CF, é preciso considerar que abrange todos os seres humanos, inclusive os autores de crimes. Note-se que, no rol dos direitos e garantias individuais do artigo 5º, constam vários direitos destinados às pessoas autoras de infrações penais (como se pode prender alguém; quem pode prender; formalidades da prisão; direitos do preso etc.). Assim sendo, a segurança do referido caput diz respeito ao seu aspecto jurídico e não à segurança pública, como sinônimo de ordem e paz no seio social.
Considerando-se os direitos humanos de terceira geração, especificamente, o direito à solidariedade, havemos de entender o compromisso de todos nós em face da segurança pública. É importante cuidar, zelar, denunciar, fiscalizar, acompanhar e vistoriar tudo o que se refere ao interesse público. Desse modo, havemos de prestar a devida atenção tanto à vítima do crime quanto ao agente do delito, para que não se instaure um tribunal de exceção, como se dá, por exemplo, na hipótese de um linchamento.
Alguns países, como o Brasil, vivenciam uma guerra interna entre marginais fortemente armados e policiais, nem sempre com o mesmo calibre de armas. O Estado precisa atentar para tais fatos, apoiando a sua polícia, ao mesmo tempo em que deve exigir respeito aos direitos humanos fundamentais. Não há nenhuma contradição nisso. Se o marginal ataca a tropa com fuzis, possa a tropa ter arma suficiente e eficiente para responder à altura. Entretanto, o fato de parte da criminalidade utilizar armas de grosso calibre não autoriza o resto da polícia a simplesmente eliminar o ladrão ou o assaltante que não os afronta do mesmo modo. Voltemos o nosso raciocínio, novamente, aos princípios fundamentais na esfera criminal: razoabilidade e proporcionalidade.
Aliás, quando se menciona o Estado como violador dos direitos humanos, é preciso destacar que os verdadeiros violadores são os agentes do Estado; desse modo, havendo punição a quem assim agir permite que a imagem do Estado continue preservada, como garantidor dos direitos individuais.
Quem pretende isolar no cenário do direito os “grupos de direitos humanos”, como se fossem apoiadores do crime, é obtuso, cego à realidade. O mesmo se pode dizer daqueles defensores dos direitos humanos cuja visão se volta a sustentar que a defesa da segurança pública é um atraso ou atitude reacionária.
A bem da verdade, soa-me desprezível o uso de frases de efeito: “a turma dos direitos humanos”; “os fascistas da segurança pública”... Prefiro considerar um desatino essa “divisão”, frisando que todos os cidadãos de bem querem viver em paz, sem crimes e sem abusos estatais.
Um dos pontos problemáticos mais relevantes concerne à política de remendos usada pelo Estado para pretensamente resolver problemas. Explicando: a política de remendos diz respeito à repressão ao crime, vale dizer, o que já consta como lesão a algum bem jurídico é objeto de preocupação estatal. Esquece-se o Estado, por seus agentes, que a prevençãoé o melhor caminho. Manter vias públicas limpas e bem iluminadas, inserir a polícia preventiva nos bairros, possuindo contatos com a comunidade, promover o lazer para crianças e jovens, estimular a educação e a cultura como formas de aprimoramento comportamental, instituir um conselho de direitos humanos para que não existam porta-vozes ilegítimos, enfim, adotar um programa de prevenção é o caminho significativamente melhor.
A polícia brasileira (militar ou civil) não é culpada pela decadência da segurança pública. Nem o é a sociedade. As autoridades governantes são as principais responsáveis pelo desatino atual da política criminal, optando por um critério de repressão (sempre atrasado em face do crime) em lugar do fator de prevenção (muito mais eficiente).
Guilherme de Souza Nucci é livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

ARTIGO G.Nucci: 10 anos da Lei de Drogas

A droga da Lei de Drogas
*Por Guilherme de Souza Nucci, livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Completando 10 anos de existência, a Lei 11.343/2006 não oferece nenhum motivo para comemoração, pois ela, se vantagem trouxe, foi somente para substituir outras leis ainda mais decadentes e confusas (Lei 6.368/76 e Lei 10.409/2002). Enquanto muitos juristas debatem os 10 anos da Lei Maria da Penha (Lei 10.340/2006), verificando os seus pontos fracos, com o objetivo de aprimorá-la, as discussões em torno da Lei de Drogas são raras, quase inexistentes. De outro lado, o volume de processos criminais gerados, que se acumulam nos escaninhos forenses de qualquer vara ou tribunal do país, é impressionante. Em algumas varas criminais e turmas do tribunal os processos envolvendo tráfico ilícito de drogas já constituem mais de 50% do volume de trabalho. Desse imenso universo de réus, há os que estão preventivamente presos, o que propicia o aumento descontrolado da população carcerária — e pior, formada por pessoas ainda acusadas, sem condenação.
É preciso operacionalizar uma mudança radical nos chamados pontos-cegosda legislação antidrogas. Não se pode mais aguardar que a situação política do Brasil melhore e/ou a sua economia entre nos trilhos, pois os danos gerados pela quantidade enorme de pessoas provisoriamente presas, em face do número gigantesco de processos em andamento e por condenações inadequadas para a realidade, levarão a um irrecuperável estrago na estrutura jurídico-penal. 
É preciso operacionalizar uma mudança radical
nos chamados pontos-cegos da legislação antidrogas.
O primeiro fator a ser levado em conta diz respeito à diferença entre traficante e usuário, algo que a lei atual tangencia, deixando o critério diversificador em  mãos dos operadores do direito. Preceitua o artigo 28, parágrafo 2o , da Lei 11.343/2006 o seguinte: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Nem é preciso assinalar não ser o referido dispositivo aplicado, com efetividade, no cotidiano das prisões de pessoas que carregam ou manipulam drogas ilícitas. Aliás, torna-se extremamente fácil constatar o que ora se afirma: basta uma consulta à jurisprudência brasileira. O pesquisador poderá ler o conteúdo de sentenças e acórdãos e checar, por si mesmo, a inexistência da exploração desses requisitos para justificar a prisão preventiva de um indivíduo, portador de drogas, geralmente considerado traficante. Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial.
Tarda, há muito, a mão do legislador para corrigir esse distúrbio interpretativo, que provoca, sim, consequências drásticas. Há que se tomar duas medidas urgentes:
a) inverter o elemento subjetivo do tipo específico, retirando-o do artigo 28 para inserir outro no art. 33. Em outros termos, o crime previsto no artigo 33 deve conter uma finalidade especial: para o fim de comercializar, negociar, transmitir a terceiros, mesmo sem fim lucrativo imediato. Afinal, traficante não vive de caridade; as drogas são dadas a certas pessoas, num primeiro instante, para viciá-las; depois, tudo é cobrado. Traficante de drogas é pessoa abastada economicamente, podendo adquirir imóveis, móveis e, principalmente, armas pesadas. Do outro lado, está o consumidor, que deveria simplesmente ser assim considerado, quando o Estado-acusação não conseguir demonstrar a finalidade do transporte de droga para transferência a terceiros. Nesse prisma, quem carrega consigo 2 gramas é, em primeiro plano, consumidor; somente se essa presunção se desfizer (presunção relativa), pode-se acusá-lo de tráfico. Há quem diga não existir essa inversão do ônus da prova. Sugiro a quem assim pense uma consulta na jurisprudência nacional – o que já fizemos – encontrando vários julgados com expressa menção à referida inversão, pois o elemento subjetivo específico concentra-se no artigo 28 – e não no artigo 33 – demonstrado na expressão para consumo pessoal;
b) por mais que, num primeiro momento, pareça uma reforma para engessar a atividade judicial, antes assim do que vislumbrar as imensas diferenças de critérios capazes de apontar o tráfico de drogas, para uns juízes e consumo para outros. É fundamental que o Legislativo estabeleça uma quantidade para o porte de cada espécie de drogas, a fim de que se possa presumir (presunção relativa) o caráter de consumidor de quem a carrega consigo. Outros países assim fizeram, variando de 20g de maconha até 200g da mesma droga. Nada impede que o portador de 20g seja um traficante, travestido de usuário, motivo pelo qual, desmascarado pelas provas efetivamente produzidas nos autos – e não pelo achismo de qualquer operador do direito – assim será condenado.  
Outro ponto essencial é incentivar, cultuar e encerrar com uma conclusão a famosa discussão em torno da legalização do porte de drogas para uso próprio. O debate oficial teve início em julgamento, no Plenário do STF, já existindo três votos pela despenalização e/ou descriminalização do porte de maconha. No entanto, de nossa parte, cremos ser inviável que o próprio Pretório Excelso, por maior boa vontade que possua, estabeleça, sem lei, uma quantidade para ser considerada fato atípico (caso vença a tese da descriminalização ou despenalização total). Essa é uma tarefa do Legislativo, que deve exercitá-la de pronto, em face do caos instalado na interpretação diferenciadora entre o art. 28 e o art. 33. Afinal, o Brasil será um dos países que legalizará a droga (qual?) para consumo pessoal? Respondida essa questão, outras irão surgir para adequar a lei atual à realidade.
Não basta. É fundamental, ainda, estabelecer critérios mais objetivos e rigorosos para a concessão do redutor previsto pelo artigo 33, parágrafo 4o: “Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Observe-se a parte riscada (oficialmente) em virtude do julgamento proferido pelo STF, considerando a referida vedação inconstitucional. Além disso, o Pretório Excelso autorizou a aplicação de qualquer regime para o traficante, embora a maioria fixe, sempre, o fechado. O STF autorizou o uso de penas alternativas, dentro do perfil estabelecido pelo artigo 44 do Código Penal, embora a maioria imponha pena privativa de liberdade. O Supremo Tribunal Federal autorizou a liberdade provisória para traficantes, quando preenchidos os requisitos para tanto, mas a maioria decreta ou mantém a prisão provisória.
Ao menos quanto ao redutor é indispensável a participação legislativa para estabelecer um quantum (critério objetivo, formador de presunção relativa), servindo de limite ou base para a aplicação da causa de diminuição. É fundamental retirar a expressão “não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, pois tem dado margem a interpretações elásticas, a ponto de considerar qualquer um como traficante dedicado a atividades criminosas. Afinal, convenhamos, a expressão em si não diz absolutamente nada. Se o sujeito é primário e tem bons antecedentes, como regra, não se dedica à vida criminosa. E não será com a sua primeira condenação por tráfico que dentro desse perfil possa ser considerado.  Ademais, se o indivíduo é integrante de organização criminosa, aplica-se o rigor da Lei 12.850/2013 e nem é preciso falar em redutor.
A par de todas essas mazelas, há uma parcela de responsabilidade do Judiciário, no tocante à extensão da prisão provisória, sem que se analise, com o devido rigor, o binômio razoabilidade e proporcionalidade. Um acusado por tráfico de drogas, cuja quantidade seja pequena ou média, não pode jamais ficar sujeito a prisão preventiva de meses, por vezes atingindo mais de ano. Fere a razoabilidade, mormente sendo primário, com bons antecedentes. E temos constatado que tal situação acontece. Por outro lado, todo magistrado deveria checar, também, a proporcionalidade da prisão, fazendo um prognóstico, ou seja, naquele caso concreto, em tese, será viável aplicar o redutor? Se a resposta for afirmativa, significa uma diminuição considerável da pena e a prisão preventiva poderá tornar-se visivelmente desproporcional em relação à futura sanção. Lembremos que será aplicada a detração (art. 42, CP), descontando na pena todo o período de prisão provisória. Não se trata de “juízo de adivinhação”, mas de prudência judicial. Estuda-se, em todos os níveis – da graduação à pós graduação – consistir a prisão provisória a exceção, no sistema legislativo brasileiro, enquanto a liberdade do sujeito inocente, a regra. Por piores que sejam os tempos, focando-se o aumento da criminalidade, não se pode olvidar a base e a estrutura do processo penal almejado como ideal.
Estas linhas representam algumas breves considerações acerca da Lei de Drogas, que já não é atual, encontrando-se em franco desalinho em face da realidade. Há que se aplicar a uma reforma nesse cenário baseada na política criminal eleita pelo Estado Democrático de Direito. Com a palavra, o legislador.