quinta-feira, 12 de novembro de 2015




LEONENCIO NOSSA, jornalista

Então, as crônicas de Rubem Braga sobre o Rio Doce tornaram-se imagens de um mundo longínquo no tempo, na geografia. Lembrei do livro antigo e também de seu Amâncio, doqueiro que relatava histórias fascinantes do gigante que cortava o Espírito Santo, vindo de longe...É preciso dizer, na autocrítica que corrói por dentro, que o rio há muito tempo já era um amigo distante, que deixamos de visitar. A nossa visão tornou-se um levantamento frio de dados e o que pensa o homem do governo encarregado de reunir números nos sites oficiais, o juiz, o procurador e o instituto de pesquisa. É uma visão turva e pesada como são agora as águas do rio da menina que colhia ingá e oferecia o fruto ao cronista. 
Alguma justiça seja feita: existiu e existe uma produção de narrativas sobre o rio e as mineradoras de repórteres e editores heróicos, que ainda dão um duro danado nas redações da vida. Agora, talvez seja necessário dizer que, na nossa companhia no mundo da indiferença, talvez estejam a academia, a literatura, o cinema, o Ministério Público, a Justiça. A escala para medir distâncias inexplicáveis talvez passe pela análise de notícias, assim como pela avaliação do que foi feito nos últimos anos pela UFMG, pela UFES, pela UFPA e pelo pessoal conceituado dos romances e dos filmes, sempre citado nos cadernos de cultura. Não é que gostaria de ler uma tese, assistir a um filme, ler um romance e folhear uma ação civil robusta sobre o drama das meninas dos rios Parauapebas que correm em Minas e no Pará, o desemprego em Itabira e o fuzilamento de trabalhadores pela polícia para atender a um pedido de desobstrução de uma ponte feito por executivos da mineração. Acho apenas importante uma crônica com a força de quem percorre a pé e não de forma virtual o Brasil.
É possível que um dia alguém escreverá um livro denso sobre milhares de homens pobres que, no começo dos anos 1980, forçaram a ditadura a tirar a Vale do garimpo - um dos maiores movimentos da história das lutas populares da Amazônia. Ou faça um trabalho que não seja no "calor da hora" sobre a esperteza de um grupo de executivos que, no processo de venda da mineradora, ficou com o controle das ações destinadas aos trabalhadores. 
Estou certo que um dia comprarei um documentário sobre a entrega, mais recentemente, da lendária Serra Pelada para um grupo de executivos ligados à mineradora, um esquema de lavagem de dinheiro. Numa sala de faculdade, alguém defenderá uma tese sobre a relação de autoridades públicas e mineradoras ao longo dos últimos 20 anos, sem interrupção. Um seminário discutirá a semiótica da propina. E, após passar nas provas de um concurso do Ministério Público, o futuro procurador terá uma súbita vontade de fazer carreira no interior, recusando-se a tratar um pedaço de seu país como um mero trampolim. 
O holofote estará em qualquer lugar, inclusive no universo dos lobistas de grupos que provocam essas grandes tragédias admitidos como filiados pelos dois maiores partidos que travam uma guerra exclusivamente de poder. O Caboclo Bernardo, um dos gigantes da história real, se revelará vivo na trajetória de muita gente hoje sem voz. Minas, o vizinho das cabeceiras, voltará a ser, pelo menos, um retrato na parede, pintado por algum admirador de Carlos Drummond de Andrade. Nesse dia, as almas dos intelectuais brasileiros - e a minha própria - terão, novamente, alguma porcentagem de ferro.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Pornocracia: faça você mesmo a capa da revista

Ou como o amadorismo do sexo na Internet faz corar de vergonha e prejuízo os profissionais do mercado




É, mr. Miele, chegou um futuro mais estranho que a ficção científica. Um tempo em que se consome café sem cafeína, cerveja sem álcool, bolo sem açúcar, moela gourmet, feijoada completa light e Playboysem mulher pelada. Até a couve, pasme, fugiu de alguns pratos típicos e virou suco detox... E a gente ainda não viu nada.
Repare que mesmo o final de relacionamento, amigo, não tem mais lágrimas, se acaba namoro até por uma lacônica mensagem de texto ou por um emoticon sem graça, uma carinha de bunda ruborizada usando os óculos escuros da covardia amorosa. Acontece, rola sim, mas antes que confundam este libelo em defesa da vida intensa com supostas ideias mofadas, vamos focar, meu velho Miele, apenas no caso da revista e da ideia atualíssima de erotismo.
Espere aí, obediente leitor(a), não mande nudes agora, reflita com a colega Milagros Pérez Oliva, que escreveu sobre o assunto neste El País: “Em tempos de Internet, o sexo já não é mais tabu. O erotismo, expresso em forma de nu feminino mais ou menos artístico, está em baixa, varrido por uma pornografia descaradamente explícita que está ao alcance de qualquer um”.
Pode ser. Não vejo, todavia, esse cenário como negativo ou nada apocalíptico. O nu agora é infinitamente mais democrático. A pornocracia, pelo menos nos campos virtuais, vingou de vez. Toda nudez será publicada e amostrada, tio Nelson. Não mais propriedade exclusiva da estrela na capa da revista. É, de certa forma, a vingança do amadorismo e a quebra do padrão da gostosa-celebridade.
Ousada a decisão da matriz norte-americana de fazer uma espécie de strip-tease ao contrário nas suas páginas
Palavra de um amante radical dePlayboy que viu suas próprias mãos ficarem peludas, qual o truque de espelhos da Monga, nestes 40 anos da edição brasileira. Agora mesmo folheio na memória as Moniques, Lumas, Isadoras, Ísis, Veras, Bárbaras, Closes, Maitês, Brondis, Julianas, Sônias, Sabrinas, Tiazinhas, Feiticeiras, Cléos, Negrinis, Xuxas, Ohanas, Brunets, Galisteus...

Vista a roupa, meu bem

Ousada a decisão da matriz norte-americana de fazer uma espécie de strip-tease ao contrário nas suas páginas. As mulheres aparecerão vestidas. Em meio a tanta fartura de erotismo e pornografia no cabaré da Internet, pode ser revolucionário –a Playboy gringa sempre foi muito tesuda também de conteúdo. A versão tupiniquim, que também enfrenta crise de disfunção eréctil-econômica, ainda não decidiu se tomará o mesmo destino gutenberguiano. Que nunca broche de vez.
Estamos perdendo o fio do enredo nesses momentos profanos e sagrados. A morte da punheta de autor ou autoral
Agora sim, pode soltar a primeira peça de roupa, leitor(a). Tenha cuidado, porém, para não vazar na rede a nudez. Sem julgamento moral, por favor, afinal de contas, a pornografia é o erotismo dos outros -quando se passa na nossa casa, chamamos de erotismo; na casa do vizinho, julgamos pornografia pura. Não é questão de estética ou gosto. É, para variar, a patrulha moral do bairro chamado mundo. Viver é uma ideia provinciana, esteja você em Nova York ou em Cajazeiras, Paraíba.

Viva a imaginação

A Playboy, nas suas versões multinacionais, poderia incentivar, na contramão da ansiedade pelo sexo explícito e imediato, o exercício da imaginação que estamos perdendo. Principalmente os homens. De todas as faixas etárias.
Creio, na minha teoria de Sigmund Freud de boteco, que a facilidade do acervo erótico diminuiu a nossa capacidade de criar historinhas, inclusive nas sessões masturbatórias.
Estamos perdendo o fio do enredo nesses momentos profanos e sagrados. A morte da punheta de autor ou autoral, como diria, em um delírio típico dele, o genialíssimo messiê Lacan.

Último pedido

Digamos que a Playboy brasileira, amigo(a), decidisse seguir a matriz. Pura viagem, nada baseada em fatos reais, caríssimo Sérgio Xavier, competente diretor de redação aqui nos trópicos. Divaguemos mais ainda: quem você escolheria, leitor, como a mulher dos sonhos -vale qualquer uma mesmo!- para ser a capa derradeira? Favor evitar repeteco. Vamos sonhar um sonho inédito e alto, como estivéssemos nos tempos dos cachês milionários. Quem?
A Vanessa Giácomo, a Tóia da novela “A regra do jogo”? A Bruna Linzmeyer, Nelita Stewart no mesmo folhetim televisivo? Quem sabe uma criatura da novela “Os dez mandamentos” –você sabia que a Bíblia é considerada um dos livros mais eróticos da humanidade? Por que não uma anônima rainha dos nudes de redes sociais? A sua própria garota, quem dera, como na profética música “Revista Proibida” de Odair José?
A utópica Fernanda Lima totalmente “Amor & Sexo”? A lolita de “Verdades Secretas”? Uma intelectual como apostou o último calendário Pirelli? Seja quem for a escolhida, o fotógrafo sou eu quem indico: J. R. Duran, óbvio, este sabe da arte de mirar uma fêmea.
Não se limite ao possível. Pode dizer de boca cheia Camila Pitanga, mesmo que ela esteja longe de topar a missão. A Tainá Müller? Sim, vale sonhar sempre. Taís Araújo? A Trip deu primeiro, gozaria, nabuena onda, o diretor Paulo Lima, revigorando um slogan clássico da sua revista.
Faça sua aposta, agora curta os nudes amadores à vontade e bom final de semana.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O entregador de pão

Fez uma semana que não recebemos mais pães aqui na casa de minha avó. O padeiro, já em idade avançada, disse que vai parar com as entregas porque "faltam clientes", de maneira que não é mais viável ele ter de se deslocar de sua casa para a nossa região a troco de duas ou três casas na rua.

Bachan (avó, em japonês) me contou que ele entregou pães aqui por mais de 30 anos. De segunda a sábado, ao amanhecer, ele parava o carro em frente a casa, subia o primeiro lance de escadas e deixava pendurado na maçaneta de dentro do portão a sacola com os pães fresquinhos. Nunca atrasou, nunca deixou de vir, nunca o pão veio diferente.

Antes, vinha embalado numa sacola maior, já que mais pessoas moravam aqui. Mas aí meu tio Cesar (o mais novo dos filhos) casou-se e saiu de casa. O tempo levou meu jichan e aí a meia-dúzia de pães foi reduzida a quatro.

Mas o pão francês que recebíamos era o pão mais fresquinho e crocante que já comi em vida. Ficamos muito chateados. Vai fazer muita falta esse pãozinho fresco de café da manhã.

Apenas uma única vez eu cruzei com o padeiro vindo deixar o nosso pão-de-cada-dia. Disse a ele que era um dos netos da dona Maria. Ele logo perguntou sobre minha avó, sobre sua saúde etc. Disse que ia tudo bem com ela e refiz a pergunta. Ele se queixava das dores na coluna (vi a dificuldade dele se apoiando no corre-mão para subir as escadas). Estava nervoso na semana porque comprara uma cama, mais alta, dessas lojas de varejo que nos aporrinham nos comerciais de TV, mas ainda aguardava que alguém fosse lá na casa dele montá-la.

"Hoje não há mais respeito com você. Ninguém mais lhe respeita. Você entra na loja e ficam lhe tratando bem até você fazer a compra. Depois que você passa pela porta, o respeito acaba. Precisa ver como fui maltratado ao telefone. Estou com a cama lá em casa desmontada há duas semanas. Ninguém vem montar. Comprei-a justamente porque tenho um problema sério de coluna, preciso até operar", ele me revelou.

Eu lamentei com ele essas coisas. A cidade cresceu. Os serviços mudaram. É muita gente num mesmo lugar precisando das mesmas coisas. Ao mesmo tempo, já não há mais aquela paixão pelo comércio, aquela coisa herdada de família que passa de geração para geração. Para fazer uma reclamação hoje, você não vai mais direito na pessoa que lhe vendeu; vai falar por telefone com um departamento específico que só lida com isso o dia inteiro. As relações humanas estão estremecidas e ninguém mais tem respeito e interesse pela vida do outro.

Nos despedimos, lamentei seu litígio, desejei-lhe melhoras e nunca mais o vi. Espero que tenha conseguido montar sua nova cama. Espero que tenha melhorado de saúde. Minha avó veio me contar que ele havia avisado que pararia de entregar pães aqui. Pedi a ela que lhe desse um dinheiro para demonstrar nossa gratidão.

Na última vez que veio, ela ficou o esperando no quintal. Na despedida, ela disse que a meu pedido estava dando a ele um dinheirinho em sinal de retribuição. Minha avó disse que ele não conseguiu disfarçar a emoção e foi embora.

Fiz o que tinha de ser feito. Uma pessoa que por 30 anos entregou os melhores pães em sua casa mereceria muito mais. Estou errado? Sei que ele estava deixando o serviço com muita tristeza. Só queria que saísse daqui sabendo que reconhecemos o seu trabalho e que sentiríamos - muito! - a falta de seus pães.

Fico triste em perceber que São Paulo vai perdendo o padeiro, o tintureiro, o jornaleiro... Aos poucos, vamos perdendo contato com as pessoas e vamos comprando tudo pelo computador. Assim somos uma massa comum para redes de varejo, empresas de telefonia, operadores de TV e o que mais nos cerca.

Minha avó também perdeu o farmacêutico dela. Ele sabia de cor os remédios que ela tomava, aplicava-lhe injeção quando adoecia e lhe tirava a pressão frequentemente. Teve que fechar pois não aguentou a concorrência de três gigantes redes que abriram praticamente no mesmo lugar na Heitor Penteado.

E assim minha avó vai perdendo suas referências e eu fico com medo de também perder a minha.