quarta-feira, 17 de junho de 2015

O entregador de pão

Fez uma semana que não recebemos mais pães aqui na casa de minha avó. O padeiro, já em idade avançada, disse que vai parar com as entregas porque "faltam clientes", de maneira que não é mais viável ele ter de se deslocar de sua casa para a nossa região a troco de duas ou três casas na rua.

Bachan (avó, em japonês) me contou que ele entregou pães aqui por mais de 30 anos. De segunda a sábado, ao amanhecer, ele parava o carro em frente a casa, subia o primeiro lance de escadas e deixava pendurado na maçaneta de dentro do portão a sacola com os pães fresquinhos. Nunca atrasou, nunca deixou de vir, nunca o pão veio diferente.

Antes, vinha embalado numa sacola maior, já que mais pessoas moravam aqui. Mas aí meu tio Cesar (o mais novo dos filhos) casou-se e saiu de casa. O tempo levou meu jichan e aí a meia-dúzia de pães foi reduzida a quatro.

Mas o pão francês que recebíamos era o pão mais fresquinho e crocante que já comi em vida. Ficamos muito chateados. Vai fazer muita falta esse pãozinho fresco de café da manhã.

Apenas uma única vez eu cruzei com o padeiro vindo deixar o nosso pão-de-cada-dia. Disse a ele que era um dos netos da dona Maria. Ele logo perguntou sobre minha avó, sobre sua saúde etc. Disse que ia tudo bem com ela e refiz a pergunta. Ele se queixava das dores na coluna (vi a dificuldade dele se apoiando no corre-mão para subir as escadas). Estava nervoso na semana porque comprara uma cama, mais alta, dessas lojas de varejo que nos aporrinham nos comerciais de TV, mas ainda aguardava que alguém fosse lá na casa dele montá-la.

"Hoje não há mais respeito com você. Ninguém mais lhe respeita. Você entra na loja e ficam lhe tratando bem até você fazer a compra. Depois que você passa pela porta, o respeito acaba. Precisa ver como fui maltratado ao telefone. Estou com a cama lá em casa desmontada há duas semanas. Ninguém vem montar. Comprei-a justamente porque tenho um problema sério de coluna, preciso até operar", ele me revelou.

Eu lamentei com ele essas coisas. A cidade cresceu. Os serviços mudaram. É muita gente num mesmo lugar precisando das mesmas coisas. Ao mesmo tempo, já não há mais aquela paixão pelo comércio, aquela coisa herdada de família que passa de geração para geração. Para fazer uma reclamação hoje, você não vai mais direito na pessoa que lhe vendeu; vai falar por telefone com um departamento específico que só lida com isso o dia inteiro. As relações humanas estão estremecidas e ninguém mais tem respeito e interesse pela vida do outro.

Nos despedimos, lamentei seu litígio, desejei-lhe melhoras e nunca mais o vi. Espero que tenha conseguido montar sua nova cama. Espero que tenha melhorado de saúde. Minha avó veio me contar que ele havia avisado que pararia de entregar pães aqui. Pedi a ela que lhe desse um dinheiro para demonstrar nossa gratidão.

Na última vez que veio, ela ficou o esperando no quintal. Na despedida, ela disse que a meu pedido estava dando a ele um dinheirinho em sinal de retribuição. Minha avó disse que ele não conseguiu disfarçar a emoção e foi embora.

Fiz o que tinha de ser feito. Uma pessoa que por 30 anos entregou os melhores pães em sua casa mereceria muito mais. Estou errado? Sei que ele estava deixando o serviço com muita tristeza. Só queria que saísse daqui sabendo que reconhecemos o seu trabalho e que sentiríamos - muito! - a falta de seus pães.

Fico triste em perceber que São Paulo vai perdendo o padeiro, o tintureiro, o jornaleiro... Aos poucos, vamos perdendo contato com as pessoas e vamos comprando tudo pelo computador. Assim somos uma massa comum para redes de varejo, empresas de telefonia, operadores de TV e o que mais nos cerca.

Minha avó também perdeu o farmacêutico dela. Ele sabia de cor os remédios que ela tomava, aplicava-lhe injeção quando adoecia e lhe tirava a pressão frequentemente. Teve que fechar pois não aguentou a concorrência de três gigantes redes que abriram praticamente no mesmo lugar na Heitor Penteado.

E assim minha avó vai perdendo suas referências e eu fico com medo de também perder a minha.