quarta-feira, 4 de maio de 2011

Crônica muito boa do Prata

Comecei a me interessar ultimamente pelos escritos do Antonio Prata. Por enquanto só conheço suas crônicas publicadas em sua coluna no caderno Cotidiano da Folha.

Nesta, a apresentação de "sua" doutrina religiosa - ateísmo puro com filosofia do bem viver. Precisa de mais alguma coisa para ser viver, minha gente?


ANTONIO PRATA

Congregação Panteísta do Agora Mesmo


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Se buscarmos só o grande, o topo, a conta não fecha; a solução é apostar tudo nas pequenas felicidades
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POR TRÊS DÉCADAS, fui ateu e feliz. Nos últimos anos, contudo, além de uma dorzinha na lombar, comecei a sentir falta de uma religião: algo ou alguém a quem agradecer, nos dias de sol; ou contra quem blasfemar, diante das inevitáveis goteiras da vida.

Não encontrando entre os sistemas religiosos disponíveis algum que me agradasse, resolvi criar minha própria doutrina. Chama-se Congregação Panteísta do Agora Mesmo.

A CPAM não acredita em qualquer entidade ou força superior. Eu, você, a floração das cerejeiras, o vizinho que acertou na loteria: tudo fruto do acaso, sem comando ou metafísica.

Ora, se nada tem sentido ou propósito, o que ganha o leitor ao converter-se à Congregação Panteísta do Agora Mesmo? Muito! Pois minha religião sem Deus visa melhorar nossas vidas justamente pela divinização do terreno, pela devoção eterna ao tangível, pelo consciente alumbramento com o telúrico.

A CPAM nasceu da compreensão de que a felicidade não é um problema filosófico ou psicológico, mas matemático. Veja: se passarmos a vida perseguindo o grande, as glórias, o topo, a conta não fecha. Afinal, mesmo se atingidos esses áureos objetivos, a explosão de alegria por eles proporcionada dura pouco, não cobrindo nem de perto os custos da busca. A solução é apostar tudo nas pequenas felicidades, olhando apenas o presente, e a CPAM nada mais é do que um sistema destinado a organizar a fruição do comezinho.

Como toda religião precisa de rituais e termos estranhos, logo tratei de criar alguns. O espaço é curto, de modo que mencionarei apenas dois. "Blada", a manifestação do Bem, "Kruma", a do Mal, e os ritos correspondentes.

Digamos que você sentisse fome e, por acaso, encontrasse na cozinha sua fruta predileta, uma manga. Eis uma "Blada", uma pequena alegria que deve ser reconhecida e celebrada com um breve fechar de olhos, um suspiro e a pronúncia, em alto e bom som: "Blada!". Suponhamos que três "Bladas" se sucedam: você sente fome e acha a manga; recebe pelo correio o comprovante de um pagamento, vai ver um filme e encontra uma vaga bem em frente ao cinema: trata-se de uma "Tripleblada". Você deve comemorá-la fechando os olhos por dez segundos, mentalizando os três acontecimentos e repetindo: "Obrigado, oh nada, por me enviar uma Tripleblada!".

Já os pequenos infortúnios que, se acumulados, podem arruinar nosso dia, como dar uma topada, acabar a luz na hora do jogo, pedir uma empada de camarão e ouvir que só tem de palmito, são os "Krumas". Caso amargue um "Triplekruma", o fiel deve fechar os olhos e repetir, por dez segundos: "Causa alguma, causa alguma; a infelicidade é apenas um Triplekruma".

Acredito que, enaltecendo as pequenas alegrias e minimizando os percalços de todo dia, a Congregação Panteísta do Agora Mesmo poderá fazer mais por seu seguidor do que muitas religiões instituídas. E, se o fiel vier com problemas maiores, como a razão de existirmos ou a angústia com a morte, daremos a ele a sugestão de Fernando Pessoa: come chocolates, meu caro, que não há metafísica senão chocolates, e as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come chocolates!

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