terça-feira, 21 de junho de 2016

O declínio da imparcialidade na era do ativismo judicial midiático

21 de junho de 2016, 7h32

Por  e 

Quando vimos o Supremo Tribunal Federal aproveitar a brecha deixada pelo Congresso Nacional para explicitar o espírito constitucional em questões como a união de pessoas do mesmo sexo e o aborto legal para fetos anencéfalos, muitos chegamos a comemorar. Afinal, o Congresso Nacional estava sendo omisso em questões que deixavam o Brasil em situação vexatória no cenário internacional e perigosa na ordem nacional. Quem, em sã consciência, queria ser comparado às jovens democracias nominais africanas dominadas por governantes atrasados, espúrios e comprometidos com as trevas religiosas?
Ao verem a mídia convocando a população para ir às ruas fazer a democracia, num contexto de grave crise político-institucional, muitos consideraram que aquele era o caminho. Isso porque tínhamos toda uma existência nacional de atestada passividade democrática, que nos fazia mais espectadores que sujeitos do nosso destino. Como então não avalizar a associação do Judiciário com a mídia para o bem da nação?
Da posição de legislador ad hoc e de meios de comunicação salvacionistas, o Judiciário e a mídia brasileiros passaram rapidamente a exercer a liderança do processo político. Pautaram os políticos por meio de reuniões nada transparentes, suspenderam, com argumentos enganosos, as liberdades individuais em processos judiciais questionáveis, articularam a polícia federal para a concretização de seus interesses. Em mecanismo de retroalimentação, a mídia retribuiu as informações privilegiadas recebidas dos juízes com capas e manchetes que os alçavam à condição de quase divindade. Em contrapartida, o Judiciário atribuiu à mídia a condição de garante da liberdade de expressão. Deveríamos lembrar sempre que juízes já se sentiram eleitos por Deus e que muitos comunicadores sentem-se assemelhados a deuses ao manipularem informações e a opinião pública.
Muitos são os episódios que colocam em xeque a imparcialidade do Judiciário ao longo do processo de impeachment. Para fins de análise, destacamos três: a disponibilização das escutas telefônicas do ex-presidente Lula com a presidente Dilma Rousseff pelo juiz Sergio Moro; a decisão que suspendeu a posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil pelo juiz Itagiba Catta Preta Neto; e o encontro do ministro do STF Gilmar Mendes com o presidente interino Michel Temer.
No primeiro caso, em 16 de março, o juiz do processo da operação "lava jato" Sergio Moro, por meio de uma decisão judicial de legalidade questionável, determinou o levantamento do sigilo de áudios que haviam sido interceptados poucas horas antes da própria decisão. Na motivação da decisão, afirmou que o levantamento propiciava “não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública”. Os áudios foram, assim, disponibilizados para o público e, na mesma noite, o Jornal Nacional, da Rede Globo, fez uma leitura dramática das falas envolvidas na gravação, causando enorme comoção social. O episódio é considerado uma das peças-chave para criar o ambiente necessário à aprovação do processo de impeachment de Dilma Rousseff dez dias depois, pela Câmara dos Deputados.
O ministro relator do processo da "lava jato" no STF, Teori Zavascki, considerou que "a divulgação pública das conversas interceptadas da forma como ocorreu, imediata, sem levar em consideração que a prova sequer fora apropriada à sua única finalidade constitucional legítima, muito menos submetida a um contraditório mínimo". Houve, portanto, o reconhecimento de que a prova não teve por objetivo cumprir sua função processual, desviando-se de sua finalidade, qual seja, a de permitir a formação do convencimento do juiz acerca dos fatos do processo. O juiz da causa afirma de modo expresso que utiliza a prova para “escrutínio público”, ou seja, não para firmar o próprio convencimento, mas o convencimento da opinião pública. A opinião pública, de outro lado, teve acesso às provas não na sua inteireza e mediante o contraditório, mas por meio de uma apresentação parcial e descontextualizada dos fatos, isenta de qualquer imparcialidade.
O segundo episódio selecionado diz respeito à decisão liminar do juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, que sustou a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil “ou qualquer outro que lhe outorgue prerrogativa de foro”.
O juiz afirma, peremptoriamente, que o ato administrativo de nomeação do ministro teria por objetivo a “intervenção indevida e odiosa” da presidente da República na atividade policial e judiciária, objetivando o deslocamento de competências, sendo que “este seria o único ou principal móvel da atuação da mandatária”. Na decisão de meras duas páginas, o juiz não cogita outras motivações para o ato administrativo, nem mesmo a de que a nomeação teria por objetivo o trânsito do ex-presidente junto ao Congresso Nacional para articular politicamente o travamento do processo de impeachment. Em nenhum momento da sintética decisão, há menção a qualquer situação de fato que embase seu fundamento. Não há menção a nenhum meio de prova. Exige-se dos jurisdicionados e dos cidadãos em geral que adivinhem em que fatos jurídicos subsumir-se-ia a decisão. Em verdade, quase se exige que a decisão seja complementada pelas manchetes do jornal do dia, formando com elas um todo indivisível. Aliás, de fato, a própria decisão tornou-se manchete de todos os jornais.
O que poderia explicar uma decisão fundamentada sem alusão a qualquer fato jurídico? A resposta mais provável não está nos autos, mas na página pessoal do juiz na rede social Facebook, que mostra um forte ativismo político na causa do impeachment, presente em atos e passeatas a favor do impedimento, publicando frases como “Fora, Dilma”, “Fora, PT” e “Se matarem [Lula], vira defunto” e outras publicações que não deixavam qualquer dúvida quanto ao comprometimento ideológico do juiz com questões ligadas à política nacional. Embora seja inegável que um juiz possa participar de atos cívicos e partilhar de opiniões políticas, é também inegável que a paixão ideológica sobre determinado tema não se coaduna com a posição de sujeito imparcial do processo.
O último episódio selecionado é o encontro entre o ministro do STF Gilmar Mendes e o presidente interino Michel Temer, ocorrido em 28 de maio, na residência oficial do último. A reunião não constava da agenda oficial do ministro, e os jornais apresentaram motivos diferentes para ela. Gilmar Mendes é o ministro relator do processo que deve julgar a prestação de contas da chapa Rousseff-Temer no TSE, e o encontro fora da agenda oficial do ministro causou estranheza. Gilmar Mendes é conhecido por suas críticas ao PT e por tornar públicos perante a mídia pronunciamentos acerca do governo petista.
Esses episódios, dentre tantos outros que poderiam também ser selecionados, demonstram o quanto o Judiciário colocou-se no centro da crise política que o país vive. Essa posição epicêntrica não seria necessariamente preocupante não fossem os indícios de ausência de imparcialidade da atividade judicial que os marcam, agravados diante das negociações políticas relativas ao aumento salarial da magistratura, que tiveram início dez dias após a aprovação do impeachment pela Câmara dos Deputados e que culminou com a aprovação de um pacote de ajustes salariais do funcionalismo pela base do governo interino, com impacto calculado na ordem de R$ 58 bilhões (num contexto em que se propõe a alteração da meta primária para um déficit de R$ 170 bilhões), sendo o de maior impacto justamente o dos salários dos ministros do STF, aumento que havia sido vetado por Dilma um ano antes.
Embora peças isoladas de um quebra-cabeças muito maior e complexo não permitam uma conclusão definitiva acerca do cenário em que nos encontramos, é possível afirmar que a imparcialidade pode ser legitimamente questionada diante dos indícios de sua ruptura ou relativização.
Igualmente, não é forçoso concluir que os episódios selecionados esbarrariam nas vedações do artigo 145 do novo Código de Processo Civil, que versa sobre a suspeição do juiz e que tratou do tema da imparcialidade de modo mais amplo e mais rígido do que o CPC anterior. As hipóteses de suspeição dizem respeito a situações menos graves de comprometimento da imparcialidade que, de todo modo, recomendam o afastamento do juiz em virtude de circunstâncias subjetivas que podem colocar em risco a capacidade de julgamento com isenção. Nos episódios envolvendo os juízes Moro e Catta Preta, poder-se-ia afirmar que motivos outros, que não os estritamente ligados à atividade processual (no primeiro caso, submeter o ato em julgamento ao “escrutínio público”, e, no segundo, as paixões políticas do magistrado) enquadrar-se-iam no inciso IV do dispositivo, ao manifestar interesse no julgamento do processo. No episódio envolvendo o ministro Gilmar Mendes, seria possível afirmar que a visita fora da agenda oficial tanto poderia ser indicativa de violação do inciso I (amizade entre juiz e parte) quanto do inciso II (aconselhamento da parte).
A indagação que daí decorre é se seria legítima por parte da sociedade civil a expectativa de que tais juízes se averbassem, eles mesmos, suspeitos para o julgamento dos casos em que atuam. Pensamos que sim, sobremodo diante de manifestações cada vez mais frequentes e intensas questionando o papel do Judiciário em meio à crise política para a qual ele é chamado a participar na qualidade de julgador. Parece-nos que nunca o Judiciário brasileiro teve sua capacidade de julgar tão posta à prova e que não constitui exagero afirmar que o Judiciário, ele mesmo, está também vivendo uma crise institucional e de credibilidade sem precedentes.
Não poderia ser diferente. Certo é que a imparcialidade não é um mero topos retórico, mas efetivamente um pressuposto processual de validade que condiciona a atividade jurisdicional.
Na era do declínio da imparcialidade em nome de um ativismo judicial midiático, não é demais lembrar uma das mais importantes noções de teoria geral do processo: o proprium da jurisdição é a imparcialidade, conforme clássica lição de Chiovenda. O que justifica o poder do Estado de dizer, em última instância e mediante uso da força, como devem as pessoas comportarem-se é o fato de que o Estado o faz impondo o direito ao caso concreto de modo isento. Se ao Estado fosse permitido impor comportamento sem observância do devido processo legal e sem garantia de um juiz natural e imparcial, estaríamos diante de um modelo de organização estatal de cunho autoritário, marcado pela resolução de conflitos mediante uso de força bruta.
Assim, não é demais afirmar que a imparcialidade é um divisor de águas entre modelos radicalmente distintos de Estado. Somente quando a imparcialidade é assegurada e efetivamente observada podemos dizer que a jurisdição cumpre seu proprium. Preocupam os riscos que um Judiciário ativista tem assumido em nome de conveniências de ocasião.
O grande risco, ao fim e ao cabo, é que o Poder Judiciário pátrio eleve, com a participação decisiva da mídia, à categoria de cláusula pétrea de seu ativismo a ideia de que estaria autorizado — sabe-se lá por quem! — a estabelecer quando lhe convier “uma pausa democrática para freio de arrumação”, conforme declarou o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, em plena semana de abertura do processo de impeachment. Em comprovação da associação entre juízes e mídia, os meios de comunicação salvacionistas não apenas deram ampla divulgação à declaração, como a elevaram à condição de verdade inquestionável. Judiciário e mídia, associados, declaram prescindir dos demais poderes, sobretudo daquele ao qual a Constituição afirma ser de onde todo o poder emana. O povo tem para eles a mera serventia de se permitir ser objeto de suas causas. A tragédia-farsa se completaria com a concretização do golpe midiático-parlamentar-judiciário, incluindo a possibilidade de suspensão das liberdades mais essenciais nos moldes do AI-5, quando se justificasse o uso para conter os ânimos sociais, uma vez findo o período de interinidade. Trata-se do pior dos mundos, pois governado nas sombras por juízes e mídia que pretendem dispensar a política como condição da vida em sociedade.
A tragédia em que nos vemos metidos é mais profunda: não deixamos de ser uma jovem democracia latino-americana nominal, dominada por juízes e mídia salvacionistas e representada por parlamentares atrasados, espúrios e comprometidos com as trevas religiosas, como pudemos aferir na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a abertura do processo de impeachment. A exposição dessa tragédia conduz-nos à certeza de que não podemos prescindir da luta política pela eleição de representantes em sua maioria responsáveis, honestos e comprometidos com as questões que nos dizem respeito.
Jayme Benvenuto é professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
Liana Cirne Lins é professora na Universidade Federal de Pernambuco.

Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2016, 7h32
http://www.conjur.com.br/2016-jun-21/declinio-imparcialidade-ativismo-judicial-midiatico?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Prostituição é ato lícito e o Superior Tribunal de Justiça reconheceu isso


Prostituição é ato lícito. Há muito vimos defendendo esse ponto de vista, que culminou com a publicação da nossa obra Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Sempre consideramos importante levar em consideração, para a formação dos tipos penais incriminadores, a moral, a ética e os bons costumes. São eles a fonte de inspiração para o legislador em muitas hipóteses. No entanto, esses elementos também se atualizam, modernizam-se, mudam de figura e galgam outros patamares. Não é mais momento histórico, por exemplo, para falar de bons costumes no contexto da dignidade sexual — aliás, este é o novo título do capítulo do Código Penal que cuida desses crimes. A bem da verdade, os famosos bons costumes eram atribuídos somente às mulheres; o recato sexual havia de ser da mulher; quem deveria casar-se virgem, sob pena de anulação do matrimônio (CC, 1916; CP, antes da reforma de 2005) era a mulher. O homem poderia ser promíscuo e quanto mais garanhão fosse, mais conceito social obtinha.
Em épocas passadas (e possivelmente ainda hoje), os jovens eram levados por seus próprios pais, parentes e amigos mais velhos a iniciar a sua vida sexual com prostitutas. “Trate-o com carinho”, dizia o pai. Tudo para mostrar à sociedade que estava criando um macho em casa e também para não traumatizá-lo em sua primeira relação sexual. Enfim, um mundo machista.
A prostituta sempre foi útil para vários aspectos, mas recriminada pelos moralistas de plantão. Ora, o que importa a você se o seu vizinho é garoto de programa? Ou se a sua vizinha é acompanhante? A menos que conturbe sua vida, haja barulho, problemas no condomínio, abusos etc., não lhe afeta a vida, a não ser o seu pensamento, a respeito daquela conduta: o seu julgamento moral.
Diante disso, acompanhando a modernização dos costumes, vários países de Primeiro Mundo já legalizaram a prostituição, reconhecendo-a como profissão e dando-lhe as garantias devidas. O profissional do sexo sofre a fiscalização sanitária do Estado e nada é feito às escuras. Nem se deve falar dos países de Terceiro (ou mais baixo) Mundo, que ainda estão na fase de apedrejar, até a morte, a adúltera (assim como a prostituta).
Os Estados Unidos são o único país hipócrita nesse campo, pois criminaliza, em vários Estados, até mesmo a prostituição individual; ao mesmo tempo em que um candidato à presidência da República prega a construção de um muro da vergonha entre seu país e o México. Os EUA reconhecem a união estável, o casamento e o direito de adotar, por homossexuais, mas demonizam a prostituição, que acontece aos milhares de casos, sem a devida atuação estatal para coibi-la. Noutros termos, usa-se a prostituição (como crime) como moeda de troca (pode-se prender uma prostituta se ela não disser o que o policial quer saber, já que ela vive nas ruas). Idiossincrasias de uma sociedade que ainda não decidiu se quer mesmo ser livre ou atrelada a valores religiosos.
O Brasil continua no sua eterna posição de indefinição: a prostituição individual não é crime, mas também não era considerada, pelo lado civil, um ato lícito; o agenciamento da prostituição continua a ser crime, mas diversos sites promovem abertamente a atividade (vide o artigo 228, CP), ganhando muito com isso, e nada é feito; o Ministério do Trabalho regulamentou a profissão: profissional do sexo, dando-lhe um código para recolhimento da contribuição previdenciária (também não estariafavorecendo a prostituição?). Mas, continua-se a viver o impasse: a casa onde se dá o sexo pago é reduto criminoso. Ora, preferem as pessoas de bem que o sexo — que não será detido, porque nunca foi como demonstra a História — seja feito no meio da rua? Em carros, sob viadutos?
Muitos moradores de bairros nobres queixam-se de travestis fazendo ponto na frente das suas casas. Com razão. Porém, se houvesse um lugar apropriado e lícito, eles sairiam da rua. Por que passar frio? Por que sofrer humilhação? Por que ser extorquido por policiais para fazer sexo de graça? Por que optar pelo inferno se há possibilidade de um lugar protegido e oculto das famílias de bem para o sexo pago?
Em suma, em decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da 6ª Turma, no dia 17 de maio próximo passado, no HC 211.888/TO, cujo relator foi o ministro Rogério Schietti Cruz, em votação unânime, considerouato lícito a prostituição. Aliás, foi a mesma posição do juiz de primeiro grau e do Tribunal de Justiça do Tocantins. Inconformado, o Ministério Público entrou com recurso especial, que foi rejeitado e declarada extinta a punibilidade da paciente, por habeas corpus de ofício.
Em síntese, a profissional do sexo não foi paga pelo seu serviço. Tomou do cliente uma cordão com pingente folheado, usando uma faca para garantir a posse do bem, até que fosse paga. O MP acusou-a de roubo impróprio. Todas as instâncias do Judiciário desclassificaram a infração para exercício arbitrário das próprias razões (artigo 345, CP).
Correta a decisão, sob o nosso ponto de vista. Aliás, foi citada a minha obraProstituição, lenocínio e tráfico de pessoas, para justificar exatamente isso. Se o cliente não quer pagar e algo lhe é tomado para garantir esse pagamento, cuida-se de exercício arbitrário das próprias razões, mas não de roubo ou furto.
O eminente ministro promoveu, ainda, outras considerações doutrinárias, afirmando que “o direito penal, como é sabido, foi construído doutrinária e jurisprudencialmente no Brasil sobre o pilar da vontade do agente, do que se passa em sua mente no momento da prática do delito, enfim, da real intenção do autor” (grifos no original).
O programa, nesse caso concreto, custou R$ 15 e, mesmo assim, o cliente não quis pagar. Como uma pessoa de parcos recursos, como a profissional do sexo, nesse caso, que nem conhece a identidade do seu cliente, vai cobrá-lo? No Juizado Especial Cível? Não. Na visão do Ministério Público, tratou-se de um roubo. O cliente usufruiu do programa, recusou-se a pagar ínfima quantia e ainda deveria ser a profissional do sexo apenada com reclusão de, pelo menos, 5 anos e 4 meses (?!).  Se isso é justiça, não se pode mais tomar nada por justo, a não ser de forma discricionária. Se o Ministério Público, em todo o Brasil, vem lutando contra a corrupção generalizada, de valores astronômicos, atingindo bilhões de reais, com enorme dificuldade, como se pode pedir uma pena de mais de cinco anos de cadeia para uma pessoa, que prestou o serviço (não negado em momento algum), e não recebeu, enquanto corruptos saem condenados a dois anos de reclusão, com benefícios, por desvios muito maiores? Para a reflexão do leitor.
Antigamente, diziam os civilistas que a dívida de prostituição (como a de jogo) não poderia ser cobrada judicialmente, pois feria a moral e os bons costumes. Esperamos que essa visão já tenha mudado, pois, do contrário, como bem disse o ministro Rogério Schietti Cruz, está o Estado se intrometendo na “liberdade de autodeterminação sexual de adultos”.
Quanto mais legalizada e visível a prostituição, maior proteção pode ser conferida a quem realmente dela necessita: crianças e adolescentes. A prostituição juvenil é uma marca em nosso país, com o turismo sexual. Mas chamar a prostituição de adultos um ato ilícito é fugir à realidade.
Se assim for, deve o Ministério Público intrometer-se, também, nas relações sexuais violentas (sádico-masoquistas), que podem até deixar, como resultado, lesões graves. Seria muito interessante tomar conhecimento de uma denúncia contra alguém que escravizou outrem para fins sexuais, deixando o(a) parceiro(a) marcado(a) com golpes de chicote e impedindo-o(a) de exercer suas funções por mais de 30 dias. Dois adultos em sexo consensual; sem falar em prostituição, podendo até ser casados. Teria o Estado legitimidade suficiente para se imiscuir na intimidade desse casal? Também para o leitor refletir, afinal, a lesão grave é de ação pública incondicionada.
Em nosso entendimento, somente se pode elogiar a decisão do Superior Tribunal de Justiça (HC 211.888-TO, 6ª Turma, rel. Rogério Schietti Cruz, 17.05.2016, v. u.). 
*Texto alterado às 15h21 do dia 31/5 para correção.

Guilherme Nucci é desembargador em São Paulo. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Processo Penal.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-mai-30/guilherme-nucci-prostituicao-ato-licito-stj-reconheceu-isso