terça-feira, 26 de setembro de 2017

Colaboração premiada e direito de mentir são incompatíveis

21 de setembro de 2017, 10h28

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Os fatos atuais
Não é propósito deste artigo examinar detalhes da atuação do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot no caso da delação de Joesley Batista. O que se pretende é examinar e discutir, sob a perspectiva do Direito Constitucional, o instrumento da confissão premiada. É preciso fazer uma distinção entre o mau uso desse instrumento, e sua provável eficiência quando bem empregado.
Para evidenciar o mau uso, tomam-se como base depoimentos à imprensa. O delegado federal, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) — jornal O Estado de S. Paulo, 18.9.17 —, disse que o MP errou ao não periciar os áudios da JBF: “Pela nossa doutrina, foi um erro técnico não ter levado o material apresentado à análise logo que recebido. Essa é uma etapa fundamental, um protocolo padrão não só no Brasil como em todo o mundo”. Em síntese, houve, sim, um grave erro.
Dessa gravação decorreram o inusitado perdão concedido aos irmãos Batista e a precipitada acusação feita ao presidente Michel Temer. Esses dois episódios causaram perplexidade na opinião pública e deflagraram uma enorme instabilidade política e econômica, com graves prejuízos para o país. Denúncia contra qualquer presidente da República é coisa séria, pois sempre causará um terremoto político e um abalo nas instituições, repercutindo gravemente na economia e na ordem social.
Até o Supremo Tribunal Federal foi atingido. Como é sabido, o ministro Edson Fachin deu automática cobertura aos “erros” do PGR. “No entender deste relator, após o oferecimento da denúncia, nenhum outro ato de processamento é cabível em face do presidente da República, sem que se obtenha previamente referida autorização por parte do Poder Legislativo”. (O Estado de S. Paulo, 17.9.17, p. A3). No entender do ministro, o STF é apenas um moleque de recados do PGR; como qualquer office boy, recebe o papel com a denúncia e entrega no protocolo da Câmara Federal. Esse comportamento foi sufragado pela corporação.
Nesse mesmo sentido se manifestou o ministro Dias Toffoli, ao afirmar que não caberia ao STF rever o acordo feito pelo PGR: “O Estado é um só. Ele fez acordo. Não dá para dar com uma mão e tirar com a outra”. Esqueceu-se o ministro de que no Estado Democrático de Direito, não há ato de autoridade imune ao controle judicial.
Nessa mesma linha, o ministro Luiz Fux considerou que Rodrigo Janot foi ingenuamente ludibriado por Joesley Batista. Mais arguto foi o ministro Gilmar Mendes, que, dirigindo-se diretamente a Fachin, afirmou: “Tão poucas pessoas na história do STF correm o risco de ver o seu nome e o da própria Corte conspurcados por decisões que depois vão se revelar equivocadas”. (O Estado de S. Paulo, 13.9.17, capa)
No momento atual, depois que o consagrado e respeitável escritório Trench, Rossi e Watanabe revelou o comportamento espúrio de duas de suas advogadas com o agente duplo Marcelo Miller, braço direito do PGR, é impossível deixar de considerar a existência de uma trama, que foi se desenvolvendo ao longo do tempo, no curso da qual ocorreu a premeditada gravação, que nada teve de fortuita. A OAB está devendo uma palavra sobre o comportamento do advogado Marcelo Miller.
Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (15.9.17, p. A2), disse o desembargador Aloísio de Toledo Cesar: “O pior deste quadro é que o criminoso Joesley parece não ter agido sozinho quando gravou a conversa com Michel Temer. Realmente, são fortes os indícios de que ele teve como parceiro um procurador da República da confiança do procurador-geral. Qualquer procurador de Justiça sabe que o presidente da República, por ter foro privilegiado, só pode ser gravado por decisão do STF, por meio de um de seus ministros”. O vício jurídico é incontestável.
Enfim, tudo isso serve para mostrar o que não deveria ter sido feito. Resta agora examinar qual deverá ser, no futuro, a utilização da legislação existente, para um eficiente combate à corrupção.
O suporte constitucional
O artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso LIV, afirma o princípio geral do devido processo legal. Tal princípio estabelece uma garantia para os administrados, e cria um dever para todo e qualquer órgão, entidade ou agente público. A Administração Pública, em qualquer nível, toma decisões por meio de processos regularmente formalizados. Os administrados sempre precisam saber quais teriam sido os motivos, de fato e de direito, que levaram o agente público a decidir desta ou daquela maneira, pois a vontade do agente público não é livre.
Quando se trata de uma acusação, o princípio geral do devido processo legal é reforçado pelo disposto no inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A mais elementar providência concernente ao direito de defesa é a de ouvir o acusado. Não há autoridade pública imune a esse dever elementar.
Pode-se agora passar ao cerne da questão, que está no inciso LXIII, desse mesmo artigo 5º da CF: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado...”. Obviamente, em consonância com os incisos acima referidos, o direito de permanecer calado não se aplica apenas ao preso, mas, sim, a todo e qualquer acusado. Esse direito de permanecer calado significa que nenhum acusado é obrigado a se auto incriminar, ou a colaborar com a acusação. O silêncio não pode ser tomado como confissão. Juridicamente, quem cala não consente.
Entretanto, no âmbito do Direito Penal, o direito de ficar calado foi transformado em direito de mentir, como um instrumento de defesa. Confira-se os seguintes fragmentos da jurisprudência: “STJ - HC 219516 SP 2011/0227843-8, Rel. Ministra LAURITA VAZ - 3. O fato de o acusado eventualmente ter mentido durante seu interrogatório não constitui motivação idônea para a exasperação da pena-base. Com efeito, é dado ao réu o direito de se autodefender de modo amplo e irrestrito, cabendo exclusivamente ao órgão acusatório colher as provas suficientes para a condenação.”; “STJ - HC 103746 MS 2008/0074229-0, Rel. Ministro JORGE MUSSI - 5. Não há como valorar em desfavor do acusado, a título de má personalidade, o fato de, quando interrogado, ter negado a verdade acerca dos fatos criminosos, pois, diante do sistema de garantias constitucionais e processuais penais vigentes, e constatando-se ainda que não está obrigado legalmente a dizer a verdade, nada mais fez do que exercitar seu direito à não auto-incriminação”. Como se nota, a jurisprudência toma como algo inquestionável o direito de mentir.
Há uma interessante jurisprudência sobre o assunto, mostrando as origens do direito ao silêncio e afirmando que não existe o direito de mentir: “TRF-3 - HC 124111 SP 2006.03.00.124111-4, Rel. JUIZ MÁRCIO MESQUITA - 2. A garantia insculpida no artigo 5º, inciso LXIII, que dispõe que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado", tem origens na 5a Emenda a Constituição dos Estados Unidos da América, que estabelece que "no person... shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself" , ou, em tradução livre, que "nenhuma pessoa será compelida, em nenhuma causa criminal, a ser testemunha contra si mesmo".3. Referida garantia, conhecida na doutrina norte-americana como "privilege against self-incrimination", ou privilégio contra auto-incirminação, não inclui, nos Estados Unidos da América, onde nasceu — como se entende por estas terras brasileiras — nem mesmo o direito do réu a mentir, ainda que sobre fatos relativos à acusação que lhe é feita, mas apenas e tão somente o direito de permanecer calado”
O que se passará a demostrar, doravante, é a incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito de mentir. A colaboração premiada foi importada do direito norte americano, onde não existe o direito de mentir. Ao contrário do que ocorre no Brasil, lá mentir é algo extremamente grave.
A lei de organizações criminosas
Nenhum dispositivo legal pode ser interpretado isoladamente, fora do contexto no qual está inserido. Diante disso é forçoso um exame mais amplo da Lei 12.850 de 2/8/13. Conforme o artigo 3º dessa lei, a colaboração premiada é apenas um entre os oito meios de obtenção de provas. Não é o caso de um exame de cada um deles; para os fins deste estudo, é suficiente comparar a colaboração premiada com a ação controlada e a infiltração de policiais em organizações criminosas.
A colaboração premiada traz implícita uma renúncia ao direito ao silêncio. O acusado que, voluntariamente, colaborar com a investigação, poderá ter sua pena reduzida. Não basta que o acusado mencione delitos que teriam sido cometidos por outras pessoas; é essencial que as informações prestadas sejam verdadeiras e aptas para a comprovação dos delitos apontados. O benefício pode chegar até o perdão judicial, mas desde que, da colaboração, resultem proveitos concretos, tais como a identificação dos integrantes da organização criminosa e sua estrutura de funcionamento, e a recuperação do produto ou do proveito obtido pela organização criminosa.
Atendidos todos esses requisitos legais, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia, porém, desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e seja o primeiro a prestar colaboração quanto aos delitos em apuração. Além disso, nos termos do §14, “Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.” Note-se que não há expressamente, um dever de falar a verdade, mas apenas um compromisso.
Havendo uma disciplina legalmente estabelecida e uma série de requisitos para a obtenção dos benefícios, é óbvio que os atos praticados por qualquer autoridade envolvida no processo, sempre estarão sujeitos ao controle judicial. A autonomia e independência do Ministério Público não o torna soberano; imune às exigências legais. Tanto a denúncia, quanto o benefício, e muito especialmente o perdão absoluto, podem e devem ser objeto de controle judicial. Nem o STF pode, licitamente, renunciar ao seu poder/dever de controle. É indispensável verificar se os requisitos materiais e procedimentais foram observados, antes de dar seguimento ao feito.
No caso da denúncia, é preciso também, no mínimo, verificar se a conduta apontada está tipificada como crime. Não faz o menor sentido que o MP encaminhe o expediente ao Judiciário, apenas e tão somente para que este o repasse ao Legislativo. Se o Judiciário nada pode fazer, bastaria que o MP enviasse a denúncia à Câmara dos Deputados.
Em face dos atos descritos nos parágrafos iniciais, convém comparar a colaboração premiada com dois outros meios de obtenção de provas: a ação controlada e a infiltração. O que se pretende demonstrar é que, na prática, nenhuma dessas três modalidades foi observada, tendo sido criada uma figura híbrida, sem previsão legal.
Quanto à ação controlada, basta transcrever o artigo 8º e seu §1º: “Art. 8º. Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações. §1º O retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público”. Note-se que ela tem condicionantes, e exige a prévia ciência da autoridade judicial.
A infiltração de agentes policiais, nos termos do artigo 10, também tem condicionantes e “será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.” Note-se, novamente, o indispensável controle prévio exercido pelo Poder Judiciário.
Entretanto, nos casos concretos referidos, especialmente a gravação feita por Joesley Batista, houve uma mistura desses três instrumentos. O comportamento do agente da gravação se assemelhou a uma ação controlada, pois, à época, esse agente já estava sob vigilância de operações da Polícia Federal. Sem ser policial e sem autorização judicial, ele foi instruído e instrumentado para ingressar na residência do presidente da República e, sem a ciência deste, gravar uma conversa ensaiada, cheia de insinuações e induzimentos, a qual foi indevidamente editada, conforme ficou patente com os desdobramentos dos fatos.
Diante dessa rocambolesca situação, passou a haver, na imprensa, na opinião pública e no Poder Legislativo, um questionamento sobre a validade e a utilidade da colaboração premiada. Ora, nos termos da Constituição Federal e da Lei 12.850 de 02/08/13, existem limites e controles que, na prática, não foram observados.O problema, portanto, não está na lei, mas, sim, no descumprimento da lei.
Conclusões
A questão fundamental é a incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito de mentir. O acusado, hoje, sabe que pode dizer qualquer coisa, acusar outras pessoas, inventar o que for mais apetitoso para a obtenção do benefício, pois tal comportamento, embora contrário ao espírito e à letra da lei, estaria, segundo alguns, amparado pelo direito à autodefesa e o direito de mentir.
Para quem defende a existência de um suporte constitucional para esse direto, o próprio compromisso de dizer a verdade (§14ª) seria um constrangimento ilícito e, como tal, nulo, por violar o direito à ampla defesa, com todos os meios para isso necessários.
Em nosso entender, a garantia da ampla defesa assegura apenas que se lance mão de todos os meios compatíveis com a ordem jurídica. Ninguém contesta que a ordenação jurídica não contempla qualquer direito à má-fé. Ao contrário, especialmente em se tratando de atividade de qualquer agente do Poder Público, o princípio implícito é o da boa-fé. O agente público não pode atuar de má-fé, nem transigir com relação a isso no seu relacionamento com particulares. Não pode o agente público permitir, tolerar, transigir com a má-fé de quem com ele se relacione.
Ouça-se a doutrina: “A atuação administrativa, em contrariedade ao fim previsto no ordenamento positivo, viola a exigência de boa-fé. Esta exprime, na ação do administrador, a exigibilidade de uma conduta leal e honesta, ou seja, de um proceder que se pode esperar de uma pessoa de bem.” (Edilson Pereira Nobre Júnior, O Princípio da Boa-fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Sergio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, p. 168)
Esse princípio foi acolhido pelo novo Código de Processo Civil, cujo artigo 5º dispõe: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.” Além disso, o CPC cuida de sancionar a má-fé: “Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;”
No âmbito do processo administrativo, a Lei 9.784, de 29/1/99, em seu artigo 2º, contempla a moralidade entre seus princípios e, no parágrafo único desse mesmo artigo, o dever de “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”. Esse dever atinge todos os participantes do processo administrativo: tanto o agente público quanto o particular interessado.
Pode-se concluir, portanto, lembrando a lição elementar de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Edit. Forense, 9ª edição, 1984, p. 166): “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.” A mentira é incompatível com o devido processo legal, sendo absurda a interpretação que consagra a mentira como decorrente do direito ao devido processo legal.
A utilização prestante e eficiente da colaboração premiada, prevista na Lei 12.850 de 02/08/13, depende da reforma da jurisprudência que consagra o direito de mentir.
 é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 21 de setembro de 2017, 10h28

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A conta do almoço

Há quem aja como criança pequena, que vê os pais gastando e não tem ideia do esforço


Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
30 Agosto 2017

No mundo mais tradicional, o garçom sempre entregava ao homem a conta da refeição. Transformações culturais provocam dúvidas: quem assume a fatura do que foi consumido? Uma postura mais democrática e moderna é largá-la no meio da mesa e deixar que o casal decida. Os jovens nem imaginam que, em outras eras, havia até restaurantes com um cardápio para mulheres sem os preços, pois seria deselegante informar o valor da escolha dela.
As metamorfoses são amplas. O que nunca mudou? Há uma conta de almoço e ninguém, com igualdade de gêneros ou adepto do patriarcalismo cavalheiresco, deveria ignorar que existe um débito a ser saldado. 
Os norte-americanos gostam de lembrar que não há free lunch (há acrônimos como TNSTAAFL). É uma frase ampla, mas implicando, sempre, que tudo tem um custo. Inexistem gratuidades. O axioma seria um símbolo do materialismo prático dos estadunidenses. Tudo tem uma etiqueta de preço, inclusive o time que, afinal, é money. 
Voltemos a Pindorama. Qualquer benefício dado por um governo apresenta um custo. O governo retira de alguém tudo o que possui e, quando decide fazer dinheiro em larga escala, acaba retirando de mais gente ainda com a inflação subsequente. 
Sobre o uso do dinheiro público, há duas posturas iniciais. A primeira: aqueles que sabem que não há almoço grátis e desaprovam que o governo gaste com programas sociais, por exemplo. Recolher dinheiro de todos e dá-lo de forma “gratuita” a alguns (em geral, com objetivos de cooptação política) seria errado. Os que defendem essa ideia dizem que o Estado recolhe muito, penaliza todos e ajuda alguns com objetivos populistas. A voracidade arrecadatória aumenta para seduzir as massas e a crise é socializada com novas demandas. 
Existe uma segunda postura, igualmente importante. São os que reconhecem a desigualdade e conferem ao Estado o papel de nivelador. Assim, o almoço tem um custo que deve ser cobrado dos mais endinheirados para financiar almoços grátis para outros menos afortunados. 
Tanto o primeiro como o segundo grupo reconhecem que não há almoço grátis, porém divergem sobre quem deveria pagar a conta. O primeiro acha que programas sociais são desperdício de dinheiro com objetivos políticos de controle e o segundo acha que o programa social é a própria causa da existência do Estado, especialmente em áreas de baixo desenvolvimento econômico-social. O primeiro (em linhas bem gerais) acha que o indivíduo nunca deve ser penalizado pelo seu sucesso e o segundo acha que cabe ao governo evitar o afastamento entre o sucesso e o não sucesso. O primeiro grupo quer menos Estado e o segundo quer mais Estado em alguns setores. 
São posturas que uso em forma didática/pura. Na prática estão um pouco misturadas. O mesmo indivíduo que se irrita com bolsa família como estratégia populista nada esbraveja contra isenções fiscais e políticas setoriais de créditos generosos subsidiados pelo poder público. O mesmo que defende a distribuição de bens aos mais pobres, quando no poder, começa distribuindo recursos generosos ao seu grupo. Fora do plano didático de estabelecer polos extremos para explicação, na prática os dois grupos amam que a conta seja paga pelo outro. 
Há um terceiro grupo. São os que imaginam que sim, existe um almoço grátis. Não imaginam o indivíduo ou o grupo, não constroem uma posição estatizante ou antiestatal. Simplesmente alimentam o sentimento de uma cornucópia permanente a fluir riquezas inesgotáveis. Não possuem uma postura política de esquerda ou de direita, conservadora ou revolucionária. Unicamente apresentam mentalidade mágica. Funcionam como crianças pequenas que olham os pais gastando e não conseguem ter ideia da fonte, do esforço ou do valor real do meio circulante. 
Quando fiz uma pesquisa na graduação sobre discursos de deputados durante a Regência (1831-1840), lembro-me de uma história contada por um político da província do Maranhão que comentava que o governo era o cavaleiro e o cavalo era o povo. Quando um bolso parecia estar cheio ou prestes a romper com moedas em excesso, o cavaleiro transferia as peças para o outro bolso. O bolso da esquerda ou o da direita continuavam sendo carregados pelo cavalo-povo. A fala do deputado provocou muitos risos à época. 
Quem vai pagar o pato? Essa era a questão lançada pela Fiesp. Há muitas divergências sobre o custo real do pato e do almoço. Todos pagaremos, na verdade. Com impostos aumentados sobre combustíveis, o pato grasna satisfeito. A questão de Temer-garçom já não é mais sobre a entrega da conta ao cavaleiro industrial ou à dama sindicalista. O ponto central é que não foi servido almoço de fato. Faltou comida e os convidados sentem que só o outro se aproveitou. 
Na fábula tradicional, os ratos divergiam sobre quem colocaria o guizo no pescoço do gato. Os ratos do Brasil concordam muito e o guizo virou tornozeleira. Quando todos os ratos a usarem, ela será adereço carnavalesco em vez de elemento de controle penal. O almoço não veio e a conta já chegou, salgada. O que resta fazer: tatuar o nome do garçom no peito para conseguir algo extra da cozinha? O restaurante quase quebrou, o garçom tem posturas estranhas, muita coisa é decidida nos bastidores sem que os clientes saibam e, por fim, voltamos ao problema da conta: para quem será entregue? Bons almoços e boa semana para todos nós. 
Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Futuro ministro deve ter a audácia de romper com modismos jurisprudenciais

* Editorial publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo nesta quarta-feira (25/1) com o título O futuro ministro do STF.
Diante do trágico acidente aéreo em Paraty (RJ), que matou o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, cabe agora ao presidente Michel Temer a tarefa constitucional de indicar um brasileiro nato para integrar a Suprema Corte. Depois da indicação presidencial, o candidato deverá ser sabatinado pelo Senado Federal.
A Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 181, as condições para o cargo: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”.
Tais critérios — notável saber jurídico e reputação ilibada — são requisitos mínimos, como bem sabe o presidente Michel Temer, professor de Direito Constitucional. O papel institucional da Suprema Corte, atuando em todas as grandes questões e desafios do país, exige do futuro ministro do STF algumas precisas qualidades.
Em primeiro lugar, faz-se necessário alguém que, além de um sólido embasamento jurídico, conheça a fundo os problemas nacionais. Não basta dominar o Direito — é preciso ter uma noção exata da situação econômica, política e social do país. Afinal, é ao STF que, de modo especial, cabe garantir o fino equilíbrio institucional entre o Direito e a Política, entre o Direito e a Economia, entre a norma e a vida cotidiana.
Logicamente, os ministros do STF devem saber circular com domínio e precisão pela teoria jurídica contemporânea, em suas variadas correntes. O prudente e frutuoso exercício do cargo vai, porém, muito além da técnica jurídica, exigindo um conhecimento isento — não ideológico — da realidade econômica e social do país.
Outro requisito, especialmente necessário nos tempos que correm, é que o candidato tenha uma perfeita noção da estrutura institucional brasileira. Deve estar convencido de que não cabe ao pessoal sobrepor-se ao institucional e que, mais do que um protagonismo de tom messiânico supostamente civilizatório, a eficácia do trabalho de um ministro do STF vem do zeloso cumprimento de seu dever primário — garantir a aplicação da lei.
Nessa difícil tarefa de avaliar quem reúne as melhores condições para o cargo de ministro do STF, mais do que escutar momentâneas proclamações bem-intencionadas, o presidente Temer deve ter em conta o comportamento passado dos possíveis nomes a serem escolhidos. Mais do que as palavras, são as ações que devem revelar a profunda convicção de que o cargo público — o de ministro do Supremo, em especial — não é destinado ao brilho pessoal, mas ao serviço do país.
Além de uma correta percepção sobre o papel institucional do STF, há outra condição que talvez seja ainda mais difícil de ser preenchida: a coragem cívica e profissional para enfrentar — e, se necessário, quebrar — os falsos dogmas criados em torno da Constituição de 1988. O país precisa de ministros do STF capazes de dizer, quando necessário for, que o rei está nu. É urgente corrigir uma noção de Estado, absolutamente inviável e geradora de crises, que foi se fazendo norma ao longo dos anos não por força do texto constitucional, mas em decorrência de interpretações ideologicamente enviesadas.
O novo ministro precisará ter a audácia de romper com modismos jurisprudenciais, que tentam impor um artificial consenso tantas vezes prejudicial aos interesses nacionais. O substituto de Teori Zavascki deverá ter aquele bom desapego de sua imagem pessoal perante a opinião pública — e perante a opinião do mundo jurídico — para interpretar com maturidade a Constituição.
Não estava previsto que Michel Temer assumisse a Presidência da República. Assumiu-a por força da atribuição constitucional, após o impeachment de Dilma Rousseff. A princípio, também não estava previsto que ele precisaria indicar algum ministro do STF. Agora, uma vez mais, o destino coloca sobre os ombros de Michel Temer uma séria responsabilidade. Mais do que um problema, tem-se uma oportunidade única para uma nomeação absolutamente técnica, madura e em linha com as necessidades do país. Com a independência que lhe confere sua decisão de não se reeleger e o seu profundo conhecimento do mundo do Direito, Michel Temer tem todas as condições para escolher um nome em função tão somente do bem do país.