sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A respeito de revistas customizadas

No começo do mês li coluna do Marcelo Coelho, na Folha, em que ele tece considerações das quais eu não discordo nem em uma linha, a respeito do mercado de revistas customizadas. Achei um baita artigo. Ou crônica, não sei como definir.

Abaixo:

São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2010
MARCELO COELHO

Gordura para todos


HÁ REVISTAS para tudo. Se você é criador de buldogues ou representante de vendas no setor de aparas de metal, certamente existe alguém pensando em publicar, todo mês, reportagens e artigos voltados para a sua área de interesse.

A imaginação "revisteira" nunca falha. Descobre-se uma celebridade que já teve um buldogue de estimação, ou cujo avô fez fortuna com resíduos de alumínio: já está pronta a entrevista da capa. Do cinema à gastronomia, existirá sempre uma coisa que se conecta com alguma outra e, quando menos se espera, o universo inteiro será revisto e interpretado do ângulo escolhido.Nada mais parecido com uma galáxia do que uma extensão de lascas de níquel, nada que nos aproxime tanto do budismo quanto os hábitos de um buldogue; o candidato ecologista tem algo a dizer sobre a reciclagem do chumbo, e determinado técnico de futebol se inspira, quem sabe, na moral canina.Já que tudo pode se transformar em "nicho de mercado", é apenas uma questão de tempo para que tudo se transforme em revista.

Pensando assim, até que demorou muito para o surgimento de uma revista de moda voltada para mulheres acima do peso. Recebo o primeiro número de "Beleza em Curvas" (editora Digicamp).Trata-se de uma "revista para quem ampliou o seu espaço para ser bonita", diz a capa. E só num desbragado esforço de eufemismo estamos falando de "gordinhas", de pessoas com "alguns quilinhos a mais".As fotos, as dicas de consumo e os discursos de autoestima se voltam para mulheres em estado de categórica obesidade. Existe "vida feliz acima do tamanho 46", diz o editorial. "Viemos para dar espaço para todas as mulheres reais deste gigantesco, miscigenado e plural país", continua o texto.Gigantesco? Difícil saber se há controle consciente sobre os jogos de palavras que, naturalmente, ficam de tocaia quando se escreve sobre um tema tabu, como o da gordura feminina.

Domínio de texto, de qualquer modo, não é o forte dos redatores da revista. Cada página traz quantidades imoderadas de erros gramaticais, e o leitor deve estar preparado para encontrar frases como esta: "O amor é uma palavra antiga, mas um conceito pouquíssimo utilizado no geral".Ou ainda esta: "Numa antiguidade quase presente, a mulher era vista pelos maridos como reprodutora feminina".Mas vamos em frente. São tantas as páginas de mulheres realmente gordas, jovens, bem maquiadas e afirmativas, que o principal objetivo psicológico de "Beleza em Curvas" acaba por ser alcançado: naturaliza-se um pouco a obesidade e reforça-se a sensação de como também é estranho o padrão da anorexia.

Uma vez posta em funcionamento, a lógica "revisteira" já não consegue parar: tudo pode ser entendido da ótica obesa. De Rubens a Botero, a pintura dará assunto para muitas edições. De Preta Gil a Marilyn Monroe, sempre se pode destacar alguma celebridade menos obcecada com a balança.Apesar disso, há limites para essa "ação afirmativa", ou melhor, "autoafirmativa".

Um assunto não pode deixar de ser tabu nas páginas de "Beleza em Curvas".Trata-se da comida. A única reportagem sobre o tema insiste na importância da alimentação saudável: cenouras, tomates, grãos de soja. A mulher gorda e bem resolvida parece ter, aqui, a curiosa característica de não se interessar por chocolate ou marzipã.É dinâmica, esportiva, sensual. Alimenta-se com moderação, veste-se bem, não tem complexos.Ou seja, é uma mulher magra -só que com mais peso.

A contradição vem à tona num só momento da revista: uma reportagem sobre cirurgias de redução do estômago. A afirmação da gordura convive com a sua negação.O "padrão anoréxico" pode ser criticado. Mas há outra ditadura, na verdade, a ser combatida -e uma revista para gordas não difere de qualquer outra revista nesse aspecto. Trata-se da ideia de que, por uma espécie de auto-hipnose regada a muito consumo, você pode ser feliz sendo como é."Ser como você é", nessa linguagem, equivale a ter um lugar definido no mercado consumidor. Sua identidade se afirma pelo que você consome -e assim se criam, em última análise, obesos de todos os tipos: os de comida e os de cosméticos, os de aparelhos eletrônicos e os de livros, os de buldogues e os de aparas de metal. coelhofsp@uol.com.br

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