quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Sobre as pessoas que se emplacam

Deixo abaixo, apenas como uma lembrança, a coluna do Marcelo Coelho para a Folha de hoje. Achei-a um primor. O Coelho tem uma sensibilidade jornalística para captar coisas da cidade grande que, aliada à sua formação sociológica, resultam sempre em um texto crítico e com uma ironia bem reveladora.

São Paulo, quarta-feira, 02 de fevereiro de 2011


MARCELO COELHO
Uma cena de verão

--------------------------------------------------------------------------------
Eis que surge numa esquina e em outras dez o homem-placa das novas incorporações imobiliárias
--------------------------------------------------------------------------------

O CALOR das últimas semanas acaba com o ânimo de qualquer um, mas em São Paulo há outro fator que o torna mais acachapante do ponto de vista psicológico. Sábado, domingo, no pico do calor da tarde, nas ruas desertas dos bairros residenciais, mal se segurando em pé, vejo uma mulher ou um homem, não sei bem, indigente com certeza.
Seria o retrato acabado da depressão de janeiro, da fossa sem fim de fevereiro, do desespero tropical de março -não fosse o pormenor circense, o toque de alegria que tentaram impor à figura do coitado.

Uma cabeleira cor-de-rosa ou verde, um nariz de palhaço, luvas de Mickey gigantescas, pouco importa. Eis que surge numa esquina, e replica-se em outras dez, o personagem mais solitário do verão paulistano, o homem-placa das novas incorporações imobiliárias.
Digo homem-placa não porque ele seja vítima do velho sistema de ficar ensanduichado entre duas tábuas de madeira anunciando remédios ou espetáculos de teatro, nem porque, numa versão mais recente, amarrem-lhe ao corpo um meio colete de plástico amarelo para avisar que se compra ouro ali por perto.

Ele é homem-placa porque sua função é mostrar, a cada encruzilhada mais importante do caminho, a direção certa para o novo prédio que está sendo lançado.
Pelo que sei, estão proibidos os cartazes, mesmo temporários, do que quer que seja na cidade. Ao menos, não vejo mais as duas tábuas, com homem-sanduíche dentro, que indicavam nas calçadas os edifícios recém-construídos.

Durante uma época, a prática foi encostar carros velhíssimos, verdadeiras sucatas, numa vaga de esquina, colocando o anúncio do prédio em cima da capota. O efeito era ruim, sem dúvida.
Como acreditar no luxo e na distinção do edifício Duvalier, com seu espaço gourmet e seu depósito de vinho individual, se todo o sonho estava montado em cima de um Opala 74 cor de tijolo com dois pneus no chão?

Eliminaram-se os carros-placa, assim como já pertencem ao passado os grandes lançamentos performáticos do mercado imobiliário. A coisa tinha, cerca de dez anos atrás, proporções teatrais.
Determinado prédio homenageava a Nova York eterna: mocinhas eram contratadas para se fantasiar de Estátua da Liberdade, com o rosto pintado de verde, a tocha de plástico numa mão, o folheto colorido na outra. Ou então era o Tio Sam, eram Marilyns e Kennedys, que ocupavam a avenida Brasil, a Nove de Julho, as ruas do Itaim.

Passo agora pela Lapa, pela Vila Leopoldina. Há muitos prédios ainda a construir por ali; bairros ainda baixos, de ruas ortogonais e planas, sem nenhuma sombra por perto, vão ganhando seus edifícios.

Mas quanto cansaço! Talvez tenha ficado tão aquecido o mercado imobiliário que já não há mais imaginação para as grandes operações de marketing.

Talvez o delirante teatro imobiliário das ruas fosse consequência de uma época de vacas magras, em que era preciso chamar a atenção do cliente a todo custo.

Talvez a mão de obra para esse tipo de promoção tenha ficado cara demais; as mocinhas que distribuíam prospectos já se formaram em administração de empresas ou relações internacionais. Sobra o pessoal mais de baixo ainda, incapaz, provavelmente, de contato direto com o público, nem que seja para entregar um papel pela janela.

Esses homens e mulheres-placa não se comparam sequer ao guardador de carros, que precisa impor certa presença ao cliente incauto.

Estão ali graças à sua inexistência social. Só que sua função, paradoxalmente, é a de serem vistos; um cabelo azul, um gesto repetitivo apontando o caminho, já bastam.

Roupas especiais podem ser usadas num ou noutro lançamento, mas se tornam mais raras. Vi alguns moradores de rua (esse o termo mais exato) metidos num falso smoking, em que a gravata borboleta preta se pendurava mal e mal num pescoço sem camisa. A regra, contudo, é dispensar tal luxo.

Esse povo sai de onde estava -debaixo da ponte- para cozinhar ao sol, e apontar, a uma distância que não alcançam, o futuro lar da classe média. São porteiros que jamais aspiraram a ficar numa guarita.

O calor prossegue; o mercado está aquecido; a euforia não chegou até os homens-placa; o sol gostaria (é a minha impressão) de derretê-los, de esmagá-los, de reduzi-los a pó. Mas eles resistem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário