domingo, 13 de fevereiro de 2011

"A que horas prefere escrever?"

"A que horas prefere escrever?"

12 de fevereiro de 2011 0h 00


SERGIO AUGUSTO* - O Estado de S.Paulo
Em breve nas livrarias mais um volume de entrevistas com escritores publicadas pela Paris Review, o terceiro ou quarto aqui traduzido nos últimos 43 anos. Insuperáveis no gênero, só perdem em longevidade para aquele questionário que Proust inventou, Bernard Pivot levou para a TV, James Lipton para o auditório do Actors" Studio e Graydon Carter para a última página da Vanity Fair. Têm vaga cativa nas estantes de romancistas, poetas e críticos, que as leem para saciar a curiosidade sobre os hábitos, preferências e esquisitices de autores do passado e da atualidade. Clarice Lispector tinha o seu exemplar de Escritores em Ação (título da primeira tradução, lançada pela Paz e Terra) todo marcado e anotado.


Recentemente a Universidade de Illinois patrocinou um estudo coletivo sobre a influência daquelas entrevistas no meio literário, com uma longa digressão sobre sua pergunta mais frequente: "A que horas prefere escrever?" A forma pode variar, mas não seu conteúdo. É pergunta irrelevante, típica de quem não tem dúvidas mais substantivas e consequentes a respeito do entrevistado e seu método de trabalho, avaliaram os autores da digressão. Só a biógrafos deveria interessar esse tipo de informação. Outros hábitos e preferências (como os entrevistados esquentam os motores, em que ambiente ficam mais à vontade, se escrevem à mão, datilografam ou digitam, se corrigem muito, etc.) afetam muito mais a confecção de uma obra literária do que a parte do dia em que ela foi escrita.

Segundo consta, quem inventou a indefectível pergunta foi o próprio criador da Paris Review, George Plimpton, na entrevista que fez com Ernest Hemingway, em maio de 1954, num café de Madri. Também Aldous Huxley, na mesma época, foi obrigado a revelar de cara o seu expediente: sempre de manhã e um pouco mais antes do jantar; à noite, apenas leituras.

De modo geral, os escritores "pegam cedo na repartição", uns até acordam com as galinhas ou nem tiram o pijama, como é o caso de Salman Rushdie, que só depois de "aproveitar a primeira energia do dia" lê os jornais, checa a correspondência e toma uma chuveirada. García Márquez só parou de escrever ficção à noite depois que se livrou do jornalismo diário. Ao virar romancista full time, adotou o horário padrão dos profissionais do ramo (de 9 da manhã às 2 da tarde), que Graham Greene, por exemplo, acabou substituindo por outra condicionante: a produção de um mínimo de 500 palavras por dia. Uma das exceções à regra, Italo Calvino tornou-se vespertino porque gastava a manhã inventado desculpas para não trabalhar, e sempre que tentou escrever à noite não conseguia dormir depois.

Respostas mais diversificadas e relevantes nos oferece a questão do ambiente ideal de trabalho. Ray Bradbury vangloria-se de escrever numa boa em qualquer lugar. John Cheever produziu alguns de seus melhores contos num cubículo do tamanho de uma solitária. García Márquez se recusa a trabalhar em hotéis, na casa dos outros ou em máquinas de escrever e computadores emprestados. Norman Mailer carecia de um lugar com vista ampla, de preferência para o mar: nada de janela dando para um pátio ou jardim. Jack Kerouac preferia escrever na escrivaninha do quarto, "perto da cama, com bastante luz, da meia-noite até o amanhecer", mas era capaz de transformar "em sua casa" qualquer quarto de hotel ou motel e até mesmo barracas de acampamento.

Apesar de acreditar que os artistas de verdade criam em qualquer lugar, William Faulkner considerava o bordel o lugar perfeito para dar asas à imaginação. Num bordel desfrutava de teto e comida, tinha as manhãs tranquilas para escrever e as noites plenas de animação, sem contar a presença constante de fornecedores de bebida alcoólica (Faulkner foi um tremendo bebum) e a proteção garantida da polícia. Essa talvez tenha sido a resposta mais inesperada e engraçada já publicada na Paris Review.

Cinco anos atrás, num encontro de escritores de língua espanhola em Cartagena (Colômbia), a jornalista mexicana Alma Guillermoprieto, colaboradora da New York Review of Books, resolveu fugir ao ramerrão perguntando aos autores presentes se por acaso vestiam alguma roupa especial para receber as musas. Bem-vinda gozação no perfunctório jornalístico. Se o hábito não faz o monge, por que faria o escritor? Para Victor Hugo e Benjamin Franklin não fazia mesmo, tanto que eles adoravam escrever inteiramente pelados, em frontal contraste com Disraeli, que antes de pegar na pena enfarpelava-se todo como se fosse jantar com a rainha.

No seu cubículo, Cheever ficava apenas de cuecas. João Ubaldo Ribeiro ao menos põe bermudas para receber as musas, mas se recusa a vestir uma camisa, e não apenas nisso é o oposto de sua colega de Academia Nélida Piñon, que o máximo de descontração a que se permite, quando escreve, é calçar um par de tênis, assim mesmo com meias.

O que Hemingway afinal respondeu ao Plimpton?

Que começava no batente à primeira luz do dia. Se engrenava, ia em frente, até a hora do almoço, só parando quando absolutamente seguro de como continuaria sua narrativa na manhã seguinte. Mais ousado, António Lobo Antunes tem o costume de deixar sempre uma frase inconclusa para completá-la no dia seguinte. "Deixo-a no meio do caminho porque assim é mais fácil continuá-la", ensina o autor de O Arquipélago da Insônia, que jura ser este o seu único truque literário. Experimentem.


*Sérgio Augusto (Rio de Janeiro, 1942) é um jornalista e escritor brasileiro.
Começou sua carreira como crítico de cinema do periódico Tribuna da Imprensa, em 1960. Trabalhou também nos jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil, nas revistas O Cruzeiro, Fatos & Fotos, Veja e IstoÉ e nos semanários O Pasquim, Opinião e Bundas.
Foi repórter especial da Folha de São Paulo de 1981 a 1996 e, atualmente, escreve no Caderno 2 de O Estado de São Paulo e na revista Bravo!.

Nenhum comentário:

Postar um comentário