terça-feira, 26 de setembro de 2017

Colaboração premiada e direito de mentir são incompatíveis

21 de setembro de 2017, 10h28

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Os fatos atuais
Não é propósito deste artigo examinar detalhes da atuação do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot no caso da delação de Joesley Batista. O que se pretende é examinar e discutir, sob a perspectiva do Direito Constitucional, o instrumento da confissão premiada. É preciso fazer uma distinção entre o mau uso desse instrumento, e sua provável eficiência quando bem empregado.
Para evidenciar o mau uso, tomam-se como base depoimentos à imprensa. O delegado federal, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) — jornal O Estado de S. Paulo, 18.9.17 —, disse que o MP errou ao não periciar os áudios da JBF: “Pela nossa doutrina, foi um erro técnico não ter levado o material apresentado à análise logo que recebido. Essa é uma etapa fundamental, um protocolo padrão não só no Brasil como em todo o mundo”. Em síntese, houve, sim, um grave erro.
Dessa gravação decorreram o inusitado perdão concedido aos irmãos Batista e a precipitada acusação feita ao presidente Michel Temer. Esses dois episódios causaram perplexidade na opinião pública e deflagraram uma enorme instabilidade política e econômica, com graves prejuízos para o país. Denúncia contra qualquer presidente da República é coisa séria, pois sempre causará um terremoto político e um abalo nas instituições, repercutindo gravemente na economia e na ordem social.
Até o Supremo Tribunal Federal foi atingido. Como é sabido, o ministro Edson Fachin deu automática cobertura aos “erros” do PGR. “No entender deste relator, após o oferecimento da denúncia, nenhum outro ato de processamento é cabível em face do presidente da República, sem que se obtenha previamente referida autorização por parte do Poder Legislativo”. (O Estado de S. Paulo, 17.9.17, p. A3). No entender do ministro, o STF é apenas um moleque de recados do PGR; como qualquer office boy, recebe o papel com a denúncia e entrega no protocolo da Câmara Federal. Esse comportamento foi sufragado pela corporação.
Nesse mesmo sentido se manifestou o ministro Dias Toffoli, ao afirmar que não caberia ao STF rever o acordo feito pelo PGR: “O Estado é um só. Ele fez acordo. Não dá para dar com uma mão e tirar com a outra”. Esqueceu-se o ministro de que no Estado Democrático de Direito, não há ato de autoridade imune ao controle judicial.
Nessa mesma linha, o ministro Luiz Fux considerou que Rodrigo Janot foi ingenuamente ludibriado por Joesley Batista. Mais arguto foi o ministro Gilmar Mendes, que, dirigindo-se diretamente a Fachin, afirmou: “Tão poucas pessoas na história do STF correm o risco de ver o seu nome e o da própria Corte conspurcados por decisões que depois vão se revelar equivocadas”. (O Estado de S. Paulo, 13.9.17, capa)
No momento atual, depois que o consagrado e respeitável escritório Trench, Rossi e Watanabe revelou o comportamento espúrio de duas de suas advogadas com o agente duplo Marcelo Miller, braço direito do PGR, é impossível deixar de considerar a existência de uma trama, que foi se desenvolvendo ao longo do tempo, no curso da qual ocorreu a premeditada gravação, que nada teve de fortuita. A OAB está devendo uma palavra sobre o comportamento do advogado Marcelo Miller.
Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (15.9.17, p. A2), disse o desembargador Aloísio de Toledo Cesar: “O pior deste quadro é que o criminoso Joesley parece não ter agido sozinho quando gravou a conversa com Michel Temer. Realmente, são fortes os indícios de que ele teve como parceiro um procurador da República da confiança do procurador-geral. Qualquer procurador de Justiça sabe que o presidente da República, por ter foro privilegiado, só pode ser gravado por decisão do STF, por meio de um de seus ministros”. O vício jurídico é incontestável.
Enfim, tudo isso serve para mostrar o que não deveria ter sido feito. Resta agora examinar qual deverá ser, no futuro, a utilização da legislação existente, para um eficiente combate à corrupção.
O suporte constitucional
O artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso LIV, afirma o princípio geral do devido processo legal. Tal princípio estabelece uma garantia para os administrados, e cria um dever para todo e qualquer órgão, entidade ou agente público. A Administração Pública, em qualquer nível, toma decisões por meio de processos regularmente formalizados. Os administrados sempre precisam saber quais teriam sido os motivos, de fato e de direito, que levaram o agente público a decidir desta ou daquela maneira, pois a vontade do agente público não é livre.
Quando se trata de uma acusação, o princípio geral do devido processo legal é reforçado pelo disposto no inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A mais elementar providência concernente ao direito de defesa é a de ouvir o acusado. Não há autoridade pública imune a esse dever elementar.
Pode-se agora passar ao cerne da questão, que está no inciso LXIII, desse mesmo artigo 5º da CF: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado...”. Obviamente, em consonância com os incisos acima referidos, o direito de permanecer calado não se aplica apenas ao preso, mas, sim, a todo e qualquer acusado. Esse direito de permanecer calado significa que nenhum acusado é obrigado a se auto incriminar, ou a colaborar com a acusação. O silêncio não pode ser tomado como confissão. Juridicamente, quem cala não consente.
Entretanto, no âmbito do Direito Penal, o direito de ficar calado foi transformado em direito de mentir, como um instrumento de defesa. Confira-se os seguintes fragmentos da jurisprudência: “STJ - HC 219516 SP 2011/0227843-8, Rel. Ministra LAURITA VAZ - 3. O fato de o acusado eventualmente ter mentido durante seu interrogatório não constitui motivação idônea para a exasperação da pena-base. Com efeito, é dado ao réu o direito de se autodefender de modo amplo e irrestrito, cabendo exclusivamente ao órgão acusatório colher as provas suficientes para a condenação.”; “STJ - HC 103746 MS 2008/0074229-0, Rel. Ministro JORGE MUSSI - 5. Não há como valorar em desfavor do acusado, a título de má personalidade, o fato de, quando interrogado, ter negado a verdade acerca dos fatos criminosos, pois, diante do sistema de garantias constitucionais e processuais penais vigentes, e constatando-se ainda que não está obrigado legalmente a dizer a verdade, nada mais fez do que exercitar seu direito à não auto-incriminação”. Como se nota, a jurisprudência toma como algo inquestionável o direito de mentir.
Há uma interessante jurisprudência sobre o assunto, mostrando as origens do direito ao silêncio e afirmando que não existe o direito de mentir: “TRF-3 - HC 124111 SP 2006.03.00.124111-4, Rel. JUIZ MÁRCIO MESQUITA - 2. A garantia insculpida no artigo 5º, inciso LXIII, que dispõe que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado", tem origens na 5a Emenda a Constituição dos Estados Unidos da América, que estabelece que "no person... shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself" , ou, em tradução livre, que "nenhuma pessoa será compelida, em nenhuma causa criminal, a ser testemunha contra si mesmo".3. Referida garantia, conhecida na doutrina norte-americana como "privilege against self-incrimination", ou privilégio contra auto-incirminação, não inclui, nos Estados Unidos da América, onde nasceu — como se entende por estas terras brasileiras — nem mesmo o direito do réu a mentir, ainda que sobre fatos relativos à acusação que lhe é feita, mas apenas e tão somente o direito de permanecer calado”
O que se passará a demostrar, doravante, é a incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito de mentir. A colaboração premiada foi importada do direito norte americano, onde não existe o direito de mentir. Ao contrário do que ocorre no Brasil, lá mentir é algo extremamente grave.
A lei de organizações criminosas
Nenhum dispositivo legal pode ser interpretado isoladamente, fora do contexto no qual está inserido. Diante disso é forçoso um exame mais amplo da Lei 12.850 de 2/8/13. Conforme o artigo 3º dessa lei, a colaboração premiada é apenas um entre os oito meios de obtenção de provas. Não é o caso de um exame de cada um deles; para os fins deste estudo, é suficiente comparar a colaboração premiada com a ação controlada e a infiltração de policiais em organizações criminosas.
A colaboração premiada traz implícita uma renúncia ao direito ao silêncio. O acusado que, voluntariamente, colaborar com a investigação, poderá ter sua pena reduzida. Não basta que o acusado mencione delitos que teriam sido cometidos por outras pessoas; é essencial que as informações prestadas sejam verdadeiras e aptas para a comprovação dos delitos apontados. O benefício pode chegar até o perdão judicial, mas desde que, da colaboração, resultem proveitos concretos, tais como a identificação dos integrantes da organização criminosa e sua estrutura de funcionamento, e a recuperação do produto ou do proveito obtido pela organização criminosa.
Atendidos todos esses requisitos legais, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia, porém, desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e seja o primeiro a prestar colaboração quanto aos delitos em apuração. Além disso, nos termos do §14, “Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.” Note-se que não há expressamente, um dever de falar a verdade, mas apenas um compromisso.
Havendo uma disciplina legalmente estabelecida e uma série de requisitos para a obtenção dos benefícios, é óbvio que os atos praticados por qualquer autoridade envolvida no processo, sempre estarão sujeitos ao controle judicial. A autonomia e independência do Ministério Público não o torna soberano; imune às exigências legais. Tanto a denúncia, quanto o benefício, e muito especialmente o perdão absoluto, podem e devem ser objeto de controle judicial. Nem o STF pode, licitamente, renunciar ao seu poder/dever de controle. É indispensável verificar se os requisitos materiais e procedimentais foram observados, antes de dar seguimento ao feito.
No caso da denúncia, é preciso também, no mínimo, verificar se a conduta apontada está tipificada como crime. Não faz o menor sentido que o MP encaminhe o expediente ao Judiciário, apenas e tão somente para que este o repasse ao Legislativo. Se o Judiciário nada pode fazer, bastaria que o MP enviasse a denúncia à Câmara dos Deputados.
Em face dos atos descritos nos parágrafos iniciais, convém comparar a colaboração premiada com dois outros meios de obtenção de provas: a ação controlada e a infiltração. O que se pretende demonstrar é que, na prática, nenhuma dessas três modalidades foi observada, tendo sido criada uma figura híbrida, sem previsão legal.
Quanto à ação controlada, basta transcrever o artigo 8º e seu §1º: “Art. 8º. Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações. §1º O retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público”. Note-se que ela tem condicionantes, e exige a prévia ciência da autoridade judicial.
A infiltração de agentes policiais, nos termos do artigo 10, também tem condicionantes e “será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.” Note-se, novamente, o indispensável controle prévio exercido pelo Poder Judiciário.
Entretanto, nos casos concretos referidos, especialmente a gravação feita por Joesley Batista, houve uma mistura desses três instrumentos. O comportamento do agente da gravação se assemelhou a uma ação controlada, pois, à época, esse agente já estava sob vigilância de operações da Polícia Federal. Sem ser policial e sem autorização judicial, ele foi instruído e instrumentado para ingressar na residência do presidente da República e, sem a ciência deste, gravar uma conversa ensaiada, cheia de insinuações e induzimentos, a qual foi indevidamente editada, conforme ficou patente com os desdobramentos dos fatos.
Diante dessa rocambolesca situação, passou a haver, na imprensa, na opinião pública e no Poder Legislativo, um questionamento sobre a validade e a utilidade da colaboração premiada. Ora, nos termos da Constituição Federal e da Lei 12.850 de 02/08/13, existem limites e controles que, na prática, não foram observados.O problema, portanto, não está na lei, mas, sim, no descumprimento da lei.
Conclusões
A questão fundamental é a incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito de mentir. O acusado, hoje, sabe que pode dizer qualquer coisa, acusar outras pessoas, inventar o que for mais apetitoso para a obtenção do benefício, pois tal comportamento, embora contrário ao espírito e à letra da lei, estaria, segundo alguns, amparado pelo direito à autodefesa e o direito de mentir.
Para quem defende a existência de um suporte constitucional para esse direto, o próprio compromisso de dizer a verdade (§14ª) seria um constrangimento ilícito e, como tal, nulo, por violar o direito à ampla defesa, com todos os meios para isso necessários.
Em nosso entender, a garantia da ampla defesa assegura apenas que se lance mão de todos os meios compatíveis com a ordem jurídica. Ninguém contesta que a ordenação jurídica não contempla qualquer direito à má-fé. Ao contrário, especialmente em se tratando de atividade de qualquer agente do Poder Público, o princípio implícito é o da boa-fé. O agente público não pode atuar de má-fé, nem transigir com relação a isso no seu relacionamento com particulares. Não pode o agente público permitir, tolerar, transigir com a má-fé de quem com ele se relacione.
Ouça-se a doutrina: “A atuação administrativa, em contrariedade ao fim previsto no ordenamento positivo, viola a exigência de boa-fé. Esta exprime, na ação do administrador, a exigibilidade de uma conduta leal e honesta, ou seja, de um proceder que se pode esperar de uma pessoa de bem.” (Edilson Pereira Nobre Júnior, O Princípio da Boa-fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Sergio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, p. 168)
Esse princípio foi acolhido pelo novo Código de Processo Civil, cujo artigo 5º dispõe: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.” Além disso, o CPC cuida de sancionar a má-fé: “Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;”
No âmbito do processo administrativo, a Lei 9.784, de 29/1/99, em seu artigo 2º, contempla a moralidade entre seus princípios e, no parágrafo único desse mesmo artigo, o dever de “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”. Esse dever atinge todos os participantes do processo administrativo: tanto o agente público quanto o particular interessado.
Pode-se concluir, portanto, lembrando a lição elementar de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Edit. Forense, 9ª edição, 1984, p. 166): “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.” A mentira é incompatível com o devido processo legal, sendo absurda a interpretação que consagra a mentira como decorrente do direito ao devido processo legal.
A utilização prestante e eficiente da colaboração premiada, prevista na Lei 12.850 de 02/08/13, depende da reforma da jurisprudência que consagra o direito de mentir.
 é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 21 de setembro de 2017, 10h28

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A conta do almoço

Há quem aja como criança pequena, que vê os pais gastando e não tem ideia do esforço


Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
30 Agosto 2017

No mundo mais tradicional, o garçom sempre entregava ao homem a conta da refeição. Transformações culturais provocam dúvidas: quem assume a fatura do que foi consumido? Uma postura mais democrática e moderna é largá-la no meio da mesa e deixar que o casal decida. Os jovens nem imaginam que, em outras eras, havia até restaurantes com um cardápio para mulheres sem os preços, pois seria deselegante informar o valor da escolha dela.
As metamorfoses são amplas. O que nunca mudou? Há uma conta de almoço e ninguém, com igualdade de gêneros ou adepto do patriarcalismo cavalheiresco, deveria ignorar que existe um débito a ser saldado. 
Os norte-americanos gostam de lembrar que não há free lunch (há acrônimos como TNSTAAFL). É uma frase ampla, mas implicando, sempre, que tudo tem um custo. Inexistem gratuidades. O axioma seria um símbolo do materialismo prático dos estadunidenses. Tudo tem uma etiqueta de preço, inclusive o time que, afinal, é money. 
Voltemos a Pindorama. Qualquer benefício dado por um governo apresenta um custo. O governo retira de alguém tudo o que possui e, quando decide fazer dinheiro em larga escala, acaba retirando de mais gente ainda com a inflação subsequente. 
Sobre o uso do dinheiro público, há duas posturas iniciais. A primeira: aqueles que sabem que não há almoço grátis e desaprovam que o governo gaste com programas sociais, por exemplo. Recolher dinheiro de todos e dá-lo de forma “gratuita” a alguns (em geral, com objetivos de cooptação política) seria errado. Os que defendem essa ideia dizem que o Estado recolhe muito, penaliza todos e ajuda alguns com objetivos populistas. A voracidade arrecadatória aumenta para seduzir as massas e a crise é socializada com novas demandas. 
Existe uma segunda postura, igualmente importante. São os que reconhecem a desigualdade e conferem ao Estado o papel de nivelador. Assim, o almoço tem um custo que deve ser cobrado dos mais endinheirados para financiar almoços grátis para outros menos afortunados. 
Tanto o primeiro como o segundo grupo reconhecem que não há almoço grátis, porém divergem sobre quem deveria pagar a conta. O primeiro acha que programas sociais são desperdício de dinheiro com objetivos políticos de controle e o segundo acha que o programa social é a própria causa da existência do Estado, especialmente em áreas de baixo desenvolvimento econômico-social. O primeiro (em linhas bem gerais) acha que o indivíduo nunca deve ser penalizado pelo seu sucesso e o segundo acha que cabe ao governo evitar o afastamento entre o sucesso e o não sucesso. O primeiro grupo quer menos Estado e o segundo quer mais Estado em alguns setores. 
São posturas que uso em forma didática/pura. Na prática estão um pouco misturadas. O mesmo indivíduo que se irrita com bolsa família como estratégia populista nada esbraveja contra isenções fiscais e políticas setoriais de créditos generosos subsidiados pelo poder público. O mesmo que defende a distribuição de bens aos mais pobres, quando no poder, começa distribuindo recursos generosos ao seu grupo. Fora do plano didático de estabelecer polos extremos para explicação, na prática os dois grupos amam que a conta seja paga pelo outro. 
Há um terceiro grupo. São os que imaginam que sim, existe um almoço grátis. Não imaginam o indivíduo ou o grupo, não constroem uma posição estatizante ou antiestatal. Simplesmente alimentam o sentimento de uma cornucópia permanente a fluir riquezas inesgotáveis. Não possuem uma postura política de esquerda ou de direita, conservadora ou revolucionária. Unicamente apresentam mentalidade mágica. Funcionam como crianças pequenas que olham os pais gastando e não conseguem ter ideia da fonte, do esforço ou do valor real do meio circulante. 
Quando fiz uma pesquisa na graduação sobre discursos de deputados durante a Regência (1831-1840), lembro-me de uma história contada por um político da província do Maranhão que comentava que o governo era o cavaleiro e o cavalo era o povo. Quando um bolso parecia estar cheio ou prestes a romper com moedas em excesso, o cavaleiro transferia as peças para o outro bolso. O bolso da esquerda ou o da direita continuavam sendo carregados pelo cavalo-povo. A fala do deputado provocou muitos risos à época. 
Quem vai pagar o pato? Essa era a questão lançada pela Fiesp. Há muitas divergências sobre o custo real do pato e do almoço. Todos pagaremos, na verdade. Com impostos aumentados sobre combustíveis, o pato grasna satisfeito. A questão de Temer-garçom já não é mais sobre a entrega da conta ao cavaleiro industrial ou à dama sindicalista. O ponto central é que não foi servido almoço de fato. Faltou comida e os convidados sentem que só o outro se aproveitou. 
Na fábula tradicional, os ratos divergiam sobre quem colocaria o guizo no pescoço do gato. Os ratos do Brasil concordam muito e o guizo virou tornozeleira. Quando todos os ratos a usarem, ela será adereço carnavalesco em vez de elemento de controle penal. O almoço não veio e a conta já chegou, salgada. O que resta fazer: tatuar o nome do garçom no peito para conseguir algo extra da cozinha? O restaurante quase quebrou, o garçom tem posturas estranhas, muita coisa é decidida nos bastidores sem que os clientes saibam e, por fim, voltamos ao problema da conta: para quem será entregue? Bons almoços e boa semana para todos nós. 
Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Futuro ministro deve ter a audácia de romper com modismos jurisprudenciais

* Editorial publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo nesta quarta-feira (25/1) com o título O futuro ministro do STF.
Diante do trágico acidente aéreo em Paraty (RJ), que matou o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, cabe agora ao presidente Michel Temer a tarefa constitucional de indicar um brasileiro nato para integrar a Suprema Corte. Depois da indicação presidencial, o candidato deverá ser sabatinado pelo Senado Federal.
A Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 181, as condições para o cargo: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”.
Tais critérios — notável saber jurídico e reputação ilibada — são requisitos mínimos, como bem sabe o presidente Michel Temer, professor de Direito Constitucional. O papel institucional da Suprema Corte, atuando em todas as grandes questões e desafios do país, exige do futuro ministro do STF algumas precisas qualidades.
Em primeiro lugar, faz-se necessário alguém que, além de um sólido embasamento jurídico, conheça a fundo os problemas nacionais. Não basta dominar o Direito — é preciso ter uma noção exata da situação econômica, política e social do país. Afinal, é ao STF que, de modo especial, cabe garantir o fino equilíbrio institucional entre o Direito e a Política, entre o Direito e a Economia, entre a norma e a vida cotidiana.
Logicamente, os ministros do STF devem saber circular com domínio e precisão pela teoria jurídica contemporânea, em suas variadas correntes. O prudente e frutuoso exercício do cargo vai, porém, muito além da técnica jurídica, exigindo um conhecimento isento — não ideológico — da realidade econômica e social do país.
Outro requisito, especialmente necessário nos tempos que correm, é que o candidato tenha uma perfeita noção da estrutura institucional brasileira. Deve estar convencido de que não cabe ao pessoal sobrepor-se ao institucional e que, mais do que um protagonismo de tom messiânico supostamente civilizatório, a eficácia do trabalho de um ministro do STF vem do zeloso cumprimento de seu dever primário — garantir a aplicação da lei.
Nessa difícil tarefa de avaliar quem reúne as melhores condições para o cargo de ministro do STF, mais do que escutar momentâneas proclamações bem-intencionadas, o presidente Temer deve ter em conta o comportamento passado dos possíveis nomes a serem escolhidos. Mais do que as palavras, são as ações que devem revelar a profunda convicção de que o cargo público — o de ministro do Supremo, em especial — não é destinado ao brilho pessoal, mas ao serviço do país.
Além de uma correta percepção sobre o papel institucional do STF, há outra condição que talvez seja ainda mais difícil de ser preenchida: a coragem cívica e profissional para enfrentar — e, se necessário, quebrar — os falsos dogmas criados em torno da Constituição de 1988. O país precisa de ministros do STF capazes de dizer, quando necessário for, que o rei está nu. É urgente corrigir uma noção de Estado, absolutamente inviável e geradora de crises, que foi se fazendo norma ao longo dos anos não por força do texto constitucional, mas em decorrência de interpretações ideologicamente enviesadas.
O novo ministro precisará ter a audácia de romper com modismos jurisprudenciais, que tentam impor um artificial consenso tantas vezes prejudicial aos interesses nacionais. O substituto de Teori Zavascki deverá ter aquele bom desapego de sua imagem pessoal perante a opinião pública — e perante a opinião do mundo jurídico — para interpretar com maturidade a Constituição.
Não estava previsto que Michel Temer assumisse a Presidência da República. Assumiu-a por força da atribuição constitucional, após o impeachment de Dilma Rousseff. A princípio, também não estava previsto que ele precisaria indicar algum ministro do STF. Agora, uma vez mais, o destino coloca sobre os ombros de Michel Temer uma séria responsabilidade. Mais do que um problema, tem-se uma oportunidade única para uma nomeação absolutamente técnica, madura e em linha com as necessidades do país. Com a independência que lhe confere sua decisão de não se reeleger e o seu profundo conhecimento do mundo do Direito, Michel Temer tem todas as condições para escolher um nome em função tão somente do bem do país.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Guilherme Nucci: Segurança pública: um dever de todos

Sentir-se seguro significa estar confortável, livre de preocupações, envolto na sensação de bem-estar. Não por acaso, o termo segurança foi adicionado a outros, fazendo nascer a segurança jurídica (ter o cidadão a certeza de que o Estado não poderá prejudicá-lo sem lei, nem voltar-se contra o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada), a segurança material (ter o cidadão a garantia de não ser agredido de qualquer forma) e a segurança pública (contar a sociedade com a paz social).
De todo modo, o artigo 144 da Constituição Federal é bem claro ao enunciar: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (grifamos). Diante disso, algumas conclusões podem ser extraídas: a) no caput do artigo 5º, o termo segurança diz respeito à segurança individual, como explicitado acima no contexto da segurança jurídica; b) a segurança pública não é direito individual, pois é direito de toda a sociedade; c) a segurança pública conta, não somente com agentes públicos, mas com todos os cidadãos para que se concretize satisfatoriamente.
Ainda, ratificando o conceito de segurança jurídica, inserido no artigo 5º, caput, da CF, é preciso considerar que abrange todos os seres humanos, inclusive os autores de crimes. Note-se que, no rol dos direitos e garantias individuais do artigo 5º, constam vários direitos destinados às pessoas autoras de infrações penais (como se pode prender alguém; quem pode prender; formalidades da prisão; direitos do preso etc.). Assim sendo, a segurança do referido caput diz respeito ao seu aspecto jurídico e não à segurança pública, como sinônimo de ordem e paz no seio social.
Considerando-se os direitos humanos de terceira geração, especificamente, o direito à solidariedade, havemos de entender o compromisso de todos nós em face da segurança pública. É importante cuidar, zelar, denunciar, fiscalizar, acompanhar e vistoriar tudo o que se refere ao interesse público. Desse modo, havemos de prestar a devida atenção tanto à vítima do crime quanto ao agente do delito, para que não se instaure um tribunal de exceção, como se dá, por exemplo, na hipótese de um linchamento.
Alguns países, como o Brasil, vivenciam uma guerra interna entre marginais fortemente armados e policiais, nem sempre com o mesmo calibre de armas. O Estado precisa atentar para tais fatos, apoiando a sua polícia, ao mesmo tempo em que deve exigir respeito aos direitos humanos fundamentais. Não há nenhuma contradição nisso. Se o marginal ataca a tropa com fuzis, possa a tropa ter arma suficiente e eficiente para responder à altura. Entretanto, o fato de parte da criminalidade utilizar armas de grosso calibre não autoriza o resto da polícia a simplesmente eliminar o ladrão ou o assaltante que não os afronta do mesmo modo. Voltemos o nosso raciocínio, novamente, aos princípios fundamentais na esfera criminal: razoabilidade e proporcionalidade.
Aliás, quando se menciona o Estado como violador dos direitos humanos, é preciso destacar que os verdadeiros violadores são os agentes do Estado; desse modo, havendo punição a quem assim agir permite que a imagem do Estado continue preservada, como garantidor dos direitos individuais.
Quem pretende isolar no cenário do direito os “grupos de direitos humanos”, como se fossem apoiadores do crime, é obtuso, cego à realidade. O mesmo se pode dizer daqueles defensores dos direitos humanos cuja visão se volta a sustentar que a defesa da segurança pública é um atraso ou atitude reacionária.
A bem da verdade, soa-me desprezível o uso de frases de efeito: “a turma dos direitos humanos”; “os fascistas da segurança pública”... Prefiro considerar um desatino essa “divisão”, frisando que todos os cidadãos de bem querem viver em paz, sem crimes e sem abusos estatais.
Um dos pontos problemáticos mais relevantes concerne à política de remendos usada pelo Estado para pretensamente resolver problemas. Explicando: a política de remendos diz respeito à repressão ao crime, vale dizer, o que já consta como lesão a algum bem jurídico é objeto de preocupação estatal. Esquece-se o Estado, por seus agentes, que a prevençãoé o melhor caminho. Manter vias públicas limpas e bem iluminadas, inserir a polícia preventiva nos bairros, possuindo contatos com a comunidade, promover o lazer para crianças e jovens, estimular a educação e a cultura como formas de aprimoramento comportamental, instituir um conselho de direitos humanos para que não existam porta-vozes ilegítimos, enfim, adotar um programa de prevenção é o caminho significativamente melhor.
A polícia brasileira (militar ou civil) não é culpada pela decadência da segurança pública. Nem o é a sociedade. As autoridades governantes são as principais responsáveis pelo desatino atual da política criminal, optando por um critério de repressão (sempre atrasado em face do crime) em lugar do fator de prevenção (muito mais eficiente).
Guilherme de Souza Nucci é livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

ARTIGO G.Nucci: 10 anos da Lei de Drogas

A droga da Lei de Drogas
*Por Guilherme de Souza Nucci, livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Completando 10 anos de existência, a Lei 11.343/2006 não oferece nenhum motivo para comemoração, pois ela, se vantagem trouxe, foi somente para substituir outras leis ainda mais decadentes e confusas (Lei 6.368/76 e Lei 10.409/2002). Enquanto muitos juristas debatem os 10 anos da Lei Maria da Penha (Lei 10.340/2006), verificando os seus pontos fracos, com o objetivo de aprimorá-la, as discussões em torno da Lei de Drogas são raras, quase inexistentes. De outro lado, o volume de processos criminais gerados, que se acumulam nos escaninhos forenses de qualquer vara ou tribunal do país, é impressionante. Em algumas varas criminais e turmas do tribunal os processos envolvendo tráfico ilícito de drogas já constituem mais de 50% do volume de trabalho. Desse imenso universo de réus, há os que estão preventivamente presos, o que propicia o aumento descontrolado da população carcerária — e pior, formada por pessoas ainda acusadas, sem condenação.
É preciso operacionalizar uma mudança radical nos chamados pontos-cegosda legislação antidrogas. Não se pode mais aguardar que a situação política do Brasil melhore e/ou a sua economia entre nos trilhos, pois os danos gerados pela quantidade enorme de pessoas provisoriamente presas, em face do número gigantesco de processos em andamento e por condenações inadequadas para a realidade, levarão a um irrecuperável estrago na estrutura jurídico-penal. 
É preciso operacionalizar uma mudança radical
nos chamados pontos-cegos da legislação antidrogas.
O primeiro fator a ser levado em conta diz respeito à diferença entre traficante e usuário, algo que a lei atual tangencia, deixando o critério diversificador em  mãos dos operadores do direito. Preceitua o artigo 28, parágrafo 2o , da Lei 11.343/2006 o seguinte: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Nem é preciso assinalar não ser o referido dispositivo aplicado, com efetividade, no cotidiano das prisões de pessoas que carregam ou manipulam drogas ilícitas. Aliás, torna-se extremamente fácil constatar o que ora se afirma: basta uma consulta à jurisprudência brasileira. O pesquisador poderá ler o conteúdo de sentenças e acórdãos e checar, por si mesmo, a inexistência da exploração desses requisitos para justificar a prisão preventiva de um indivíduo, portador de drogas, geralmente considerado traficante. Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial.
Tarda, há muito, a mão do legislador para corrigir esse distúrbio interpretativo, que provoca, sim, consequências drásticas. Há que se tomar duas medidas urgentes:
a) inverter o elemento subjetivo do tipo específico, retirando-o do artigo 28 para inserir outro no art. 33. Em outros termos, o crime previsto no artigo 33 deve conter uma finalidade especial: para o fim de comercializar, negociar, transmitir a terceiros, mesmo sem fim lucrativo imediato. Afinal, traficante não vive de caridade; as drogas são dadas a certas pessoas, num primeiro instante, para viciá-las; depois, tudo é cobrado. Traficante de drogas é pessoa abastada economicamente, podendo adquirir imóveis, móveis e, principalmente, armas pesadas. Do outro lado, está o consumidor, que deveria simplesmente ser assim considerado, quando o Estado-acusação não conseguir demonstrar a finalidade do transporte de droga para transferência a terceiros. Nesse prisma, quem carrega consigo 2 gramas é, em primeiro plano, consumidor; somente se essa presunção se desfizer (presunção relativa), pode-se acusá-lo de tráfico. Há quem diga não existir essa inversão do ônus da prova. Sugiro a quem assim pense uma consulta na jurisprudência nacional – o que já fizemos – encontrando vários julgados com expressa menção à referida inversão, pois o elemento subjetivo específico concentra-se no artigo 28 – e não no artigo 33 – demonstrado na expressão para consumo pessoal;
b) por mais que, num primeiro momento, pareça uma reforma para engessar a atividade judicial, antes assim do que vislumbrar as imensas diferenças de critérios capazes de apontar o tráfico de drogas, para uns juízes e consumo para outros. É fundamental que o Legislativo estabeleça uma quantidade para o porte de cada espécie de drogas, a fim de que se possa presumir (presunção relativa) o caráter de consumidor de quem a carrega consigo. Outros países assim fizeram, variando de 20g de maconha até 200g da mesma droga. Nada impede que o portador de 20g seja um traficante, travestido de usuário, motivo pelo qual, desmascarado pelas provas efetivamente produzidas nos autos – e não pelo achismo de qualquer operador do direito – assim será condenado.  
Outro ponto essencial é incentivar, cultuar e encerrar com uma conclusão a famosa discussão em torno da legalização do porte de drogas para uso próprio. O debate oficial teve início em julgamento, no Plenário do STF, já existindo três votos pela despenalização e/ou descriminalização do porte de maconha. No entanto, de nossa parte, cremos ser inviável que o próprio Pretório Excelso, por maior boa vontade que possua, estabeleça, sem lei, uma quantidade para ser considerada fato atípico (caso vença a tese da descriminalização ou despenalização total). Essa é uma tarefa do Legislativo, que deve exercitá-la de pronto, em face do caos instalado na interpretação diferenciadora entre o art. 28 e o art. 33. Afinal, o Brasil será um dos países que legalizará a droga (qual?) para consumo pessoal? Respondida essa questão, outras irão surgir para adequar a lei atual à realidade.
Não basta. É fundamental, ainda, estabelecer critérios mais objetivos e rigorosos para a concessão do redutor previsto pelo artigo 33, parágrafo 4o: “Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Observe-se a parte riscada (oficialmente) em virtude do julgamento proferido pelo STF, considerando a referida vedação inconstitucional. Além disso, o Pretório Excelso autorizou a aplicação de qualquer regime para o traficante, embora a maioria fixe, sempre, o fechado. O STF autorizou o uso de penas alternativas, dentro do perfil estabelecido pelo artigo 44 do Código Penal, embora a maioria imponha pena privativa de liberdade. O Supremo Tribunal Federal autorizou a liberdade provisória para traficantes, quando preenchidos os requisitos para tanto, mas a maioria decreta ou mantém a prisão provisória.
Ao menos quanto ao redutor é indispensável a participação legislativa para estabelecer um quantum (critério objetivo, formador de presunção relativa), servindo de limite ou base para a aplicação da causa de diminuição. É fundamental retirar a expressão “não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, pois tem dado margem a interpretações elásticas, a ponto de considerar qualquer um como traficante dedicado a atividades criminosas. Afinal, convenhamos, a expressão em si não diz absolutamente nada. Se o sujeito é primário e tem bons antecedentes, como regra, não se dedica à vida criminosa. E não será com a sua primeira condenação por tráfico que dentro desse perfil possa ser considerado.  Ademais, se o indivíduo é integrante de organização criminosa, aplica-se o rigor da Lei 12.850/2013 e nem é preciso falar em redutor.
A par de todas essas mazelas, há uma parcela de responsabilidade do Judiciário, no tocante à extensão da prisão provisória, sem que se analise, com o devido rigor, o binômio razoabilidade e proporcionalidade. Um acusado por tráfico de drogas, cuja quantidade seja pequena ou média, não pode jamais ficar sujeito a prisão preventiva de meses, por vezes atingindo mais de ano. Fere a razoabilidade, mormente sendo primário, com bons antecedentes. E temos constatado que tal situação acontece. Por outro lado, todo magistrado deveria checar, também, a proporcionalidade da prisão, fazendo um prognóstico, ou seja, naquele caso concreto, em tese, será viável aplicar o redutor? Se a resposta for afirmativa, significa uma diminuição considerável da pena e a prisão preventiva poderá tornar-se visivelmente desproporcional em relação à futura sanção. Lembremos que será aplicada a detração (art. 42, CP), descontando na pena todo o período de prisão provisória. Não se trata de “juízo de adivinhação”, mas de prudência judicial. Estuda-se, em todos os níveis – da graduação à pós graduação – consistir a prisão provisória a exceção, no sistema legislativo brasileiro, enquanto a liberdade do sujeito inocente, a regra. Por piores que sejam os tempos, focando-se o aumento da criminalidade, não se pode olvidar a base e a estrutura do processo penal almejado como ideal.
Estas linhas representam algumas breves considerações acerca da Lei de Drogas, que já não é atual, encontrando-se em franco desalinho em face da realidade. Há que se aplicar a uma reforma nesse cenário baseada na política criminal eleita pelo Estado Democrático de Direito. Com a palavra, o legislador.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Entrevista Fábio Tofic, novo presidente do IDDD

GANÂNCIA DO ESTADO

"Melhor forma de combater a corrupção é limitando poderes dos agentes públicos"


O criminalista Fábio Tofic Simantob tem um duro desafio pela frente. Ele quer mostrar para a sociedade que o cumprimento das regras é tão importante quanto o combate ao crime. O novo presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), chega à instituição em meio a um cenário que parece desolador, onde direitos são suprimidos em nome da segurança ou do “combate à impunidade”.
Tofic não vê com bons olhos as chamadas 10 medidas contra a corrupção, defendidas pelo Ministério Público Federal. Para ele, é “um pouco constrangedor” ver membros do MPF proporem medidas que afetam a Justiça estadual com base na experiência que tiveram na Justiça Federal. “É como se um chef francês resolvesse defender perante uma plateia de famintos somalianos que o grande problema do mundo é a obesidade”, afirma o novo presidente do IDDD.
Em entrevista exclusiva à ConJur, o criminalista é categórico ao definir o pacote de mudanças legais defendidas pelos promotores e procuradores: trata-se de uma busca por mais poder. “Se espremermos o pacote das dez medidas, veremos que o que sobra são agentes da Justiça querendo angariar mais poderes. Só se esqueceram que poder ilimitado é uma das causas mais evidentes de corrupção sistêmica.”
Entre os movimentos que explicitam o rebaixamento do direito de defesa está a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal, que passou a permitir a prisão de réus antes do trânsito em julgado. Uma vez promulgada, a Constituição deve ser preservada, respeitada, seguida. Para Tofic, a Constituição é clara ao definir que o processo se encerra quando se encerram os recursos. Assim, na visão do novo presidente do IDDD, ao permitir a prisão para pessoas condenadas em segunda instância, antes do fim da ação, o STF diz que até mesmo aquilo que está escrito pode ser mudado. E essa relativização é um dos maiores fatores de insegurança jurídica.
Ainda na entrevista à ConJur, Fábio Tofic Simantob rebate a acusação feita por membros da Justiça Federal de que, ao buscar nulidades no processo, os advogados se esquivam de enfrentar o mérito das questões. Para ele, a culpa das nulidades não pode ser atribuída ao advogado, mas a um sistema que não prioriza as provas. “Quem abandonou o debate de mérito foi o próprio Estado, ao aceitar como provas o mesmo padrão que se usava no século XIX para condenar alguém. Restou à defesa as teses processuais. É um caminho óbvio e natural. Fruto de um faz de conta processual que o Judiciário não teve coragem de enfrentar para não entrar em confronto com a polícia e com a opinião pública”, diz.
Tofic Simantob foi vice-presidente do instituto que agora presidirá e participa também do conselho do Movimento de Defesa da Advocacia. O criminalista traz no histórico de processos em que atuou nomes como o marqueteiro João Santana, o banqueiro Edemar Cid Ferreira e os funcionários da Engevix, alvo da operação “lava jato”.
Leia a entrevista:
ConJur — Ao deixar a presidência do IDDD, o advogado Augusto de Arruda Botelho falou que “o momento é ruim para o direito de defesa”. Quais são os principais problemas que a entidade tem identificado? São mudanças que podem ser associadas à "lava jato"? Ou têm afetado também acusados menos famosos e que envolvem casos menos midiáticos?
Fábio Tofic —
 Existem duas justiças criminais. Uma Justiça criminal é aquela que parece série de TV, onde as operações têm nome, os investigados são conduzidos por policiais armados até os dentes e as fases de investigação são acompanhadas de entrevistas coletivas. A outra Justiça criminal não conhece holofote algum e, em vez de políticos e empresários poderosos, tem como alvo os pobres. São pessoas que, ainda que inocentes, são tratadas como se fossem culpadas, muitas vezes enviadas para a cadeia sem provas. A “lava jato” não é infalível como pregam alguns de seus condutores. Há problemas, e não são pequenos. Mas essa outra Justiça preocupa muito mais porque ela opera quase exclusivamente à base da supressão de direitos. Poucas são as vozes que se levantam para questioná-la. O IDDD tem um papel fundamental nesse campo. 
ConJur — O direito de defesa está sendo rebaixado no Brasil? O senhor acha que a população entende o que é isso?
Fábio Tofic —
 A supressão ao direito de defesa é cometida de forma velada. Ninguém a explicita. Nenhum delegado, promotor público ou juiz escreverá que este ou aquele cidadão foi encaminhado ao presídio porque era negro ou pobre. Nos códigos está tudo escrito, tudo desenhado para que o cidadão não seja desrespeitado. Só que não funciona, principalmente para as camadas mais desassistidas. Ainda condenamos com prova produzida no inquérito, usamos provas do século XIX, como testemunho de ouvir dizer, reconhecimento testemunhal, testemunho de policiais. Raríssimas vezes há preocupação com preservação da integridade da prova. O sistema caminha sempre no sentido da condenação. Quando o réu consegue contratar um bom advogado, as mazelas até podem ser evitadas. Mas é uma pequena minoria.
ConJur — O que o senhor pretende mudar no IDDD, como presidente?
Fábio Tofic —
 Não há dúvida de que é preciso combater o crime, mas os fins não podem justificar os meios. Culpados só devem ser mandados para a cadeia após um processo penal irreparável, e sabe por quê? Porque processos penais conduzidos de forma equivocada produzem injustiça, que vai desde o enquadramento equivocado que aumenta a pena até a condenação de um inocente. Nosso maior desafio como país é combater o crime dentro das regras. E o maior desafio do IDDD é mostrar para a sociedade que o cumprimento das regras é tão importante quanto o combate ao crime. Uma coisa é a justiça, outra bem diferente é o justiçamento. Em nome da condenação dos culpados, o Estado não pode adotar uma conduta condenável. Infelizmente, as pessoas só se dão conta da importância do direito de defesa quando se tornam rés. É uma forma muito ruim e dura de aceitar que as coisas precisam mudar.
ConJur  O Direito Penal do Inimigo é uma realidade nos nossos tribunais?
Fábio Tofic —
 O Direito Penal caminhou nos últimos anos para um afrouxamento do princípio da legalidade, mediante a adoção de institutos que alargam demais a responsabilidade do individuo. Há 20 anos, acreditava-se que o Direito Penal caminharia para um Direito Penal mínimo. Deu-se o inverso. Inflacionou-se a quantidade de novas condutas tipificadas como crimes, ao passo que algumas figuras novas criaram um sistema que exige conduta quase heroica do cidadão na prevenção do crime. Refiro-me ao domínio do fato, cegueira deliberada, dolo eventual, responsabilidade por omissão, e outras excentricidades. Enquanto isso, o Estado ganha cada vez mais poder e força, e é quase sempre desculpado quando comete erros.
ConJur — O punitivismo foi fortalecido recentemente no nosso Legislativo ou ele sempre teve força lá e agora está sendo mais sentido no noticiário?
Fábio Tofic —
 A condenação sempre será mais popular do que a absolvição. O ser humano se satisfaz com a punição dos outros, até como uma forma de expurgar seus próprios pecados. Vivemos numa sociedade onde é normal comparecer à passeata contra a corrupção no domingo, e na segunda pagar propina para garantir que o filho consiga a carteira de habilitação sem se submeter às provas de praxe. À contravenção dos outros a forca, à nossa o perdão. Os partidos capitalizam esse sentimento, e passam a usá-lo de forma populista. Essa fórmula não é nova. Produz leis ruins, e sensação enorme de insegurança
ConJur — É possível o cidadão (réu) se defender em paridade de armas com o Estado, que é Ministério Público, polícia e juiz?
Fábio Tofic —
 Do jeito que o sistema está montado hoje, arriscaria dizer que não, o que é um absurdo total. Ao expor as entranhas da estrutura do poder político, a “lava jato” gerou uma onda de indignação nacional, que sugere existir dois tipos de brasileiros. Os que querem purificar o país e os que querem manter a podridão. As vozes que se levantam para questionar o método da investigação, ou mesmo debater temas como a paridade de armas, acabam carimbadas como defensores da imundície praticada em Brasília. Precisamos entender que o momento é adverso, mas não podemos esmorecer. O direito de defesa é uma luta de todos, não apenas dos advogados. Sabe o combate ao colesterol alto? É um tema defendido por médicos, certo? Só que quem morre com artéria entupida é a sociedade.
ConJur — O que o senhor acha das “10 medidas contra a corrupção”, defendidas pelo Ministério Público Federal?
Fábio Tofic —
 É um pouco constrangedor ver membros do MPF proporem medidas que afetam réus da Justiça estadual (onde está a esmagadora maioria de réus do país), apenas com a experiência que tiveram em alguns poucos casos na Justiça Federal. É como se um chef francês resolvesse defender perante uma plateia de famintos somalianos que o grande problema do mundo é a obesidade. Se a “lava jato” conseguiu o êxito todo que conseguiu sem as dez medidas, é porque a lei não precisa ser alterada para que a corrupção possa ser combatida. A “lava jato” é a maior prova contra as dez medidas. Se espremermos o pacote das dez medidas, veremos que o que sobra são agentes da Justiça querendo angariar mais poderes. Só se esqueceram que poder ilimitado é uma das causas mais evidentes de corrupção sistêmica. A melhor forma de combater a corrupção é limitando, e não ampliando os poderes dos agentes públicos.
ConJur — É papel do MPF propor leis e fazer campanha popular pela aprovação delas?
Fábio Tofic —
 Ainda que discorde da lista das dez medidas, não posso negar ao MPF o direito de lutar por aquilo que acredita. A sociedade ganha quando todos os segmentos se mobilizam. Lutaremos para mostrar que eles estão equivocados. Trata-se de um debate saudável, próprio da democracia.
ConJur — O juiz Sergio Moro tem ganhado os holofotes. A atuação dele é representativa do Judiciário brasileiro?
Fábio Tofic —
 Se todos os juízes trabalhassem o tanto que ele trabalha, os processos andariam mais rápido, prescreveriam menos, e daria até para esperar o trânsito em julgado das condenações antes de mandar prender o réu.
ConJur — Aliás, hoje vimos a notícia de Sergio Moro em um almoço com artistas, de apoio a ele mesmo. É papel de juiz fazer isso?
Fábio Tofic — Moro virou um símbolo, e é natural que queiram homenageá-lo. Não me sinto confortável em julgar seu comportamento social. Limito-me a debater suas sentenças.
ConJur — Compartilhamento de provas com a Suíça sem autorização do Ministério da Justiça, grampos em escritório de advocacia (Teixeira Martins), presos preventivamente sendo soltos após fazerem delação... A operação “lava jato” respeita as garantias dos cidadãos?
Fábio Tofic —
 Estas respostas precisam ser dadas pelos nossos tribunais. Mas uma coisa posso garantir, a história dificilmente nos absolverá da forma como foram usadas as prisões neste caso, como inegável instrumento de obtenção de confissões e delações. Só não percebe isto quem não leu os autos.
ConJur — O uso de grampos é indiscriminado no Brasil? As delações premiadas, que ganharam espaço com a operação “lava jato”, podem ser vistas como instrumento de defesa? Ou são um instrumento do Estado para investigar?
Fábio Tofic —
 Ninguém pode ser contra o direito que um réu tem de revelar crimes em troca de um benefício qualquer, por exemplo, a redução na sua pena. Essa possibilidade está prevista no nosso ordenamento jurídico. O problema começa quando os acordos de colaboração se tornam uma forma que o Estado encontrou de suprir sua incapacidade de investigar. Uma coisa é fazer buscas e apreensões, juntar documentos, contratos, horas e horas de áudio, listas e listas de mensagens trocadas por SMS ou WhatsApp. Outra, muito diferente, é saber o que fazer com esse material todo. As cenas em que policiais paramentados recolhem HDs e caixas de papelão podem sugerir que a qualidade da investigação policial no Brasil atingiu patamares internacionais. Não nos deixemos impressionar. Está cada vez mais claro que as sucessivas fases da “lava jato” se amparam basicamente no que disseram os delatores. Basta abrir os jornais para constatar que, em muitos casos, delatar virou uma opção lucrativa, que garante a liberdade antecipada e salva uma parte significativa do patrimônio. Será que a força-tarefa não está, involuntariamente, patrocinando um bom negócio? Nos EUA, onde tais acordos surgiram, não se permite que culpados em maior grau saiam livres pela delação, nem que culpados de menor grau sejam punidos de forma tão severa. Lá, o réu tem direito a celebrar um acordo mesmo que não seja de delação. Aqui não. Quem sabe pouco fica preso. Quem sabe muito sai rápido. Esse sistema a longo prazo é capaz de produzir grande injustiça, e reforçar o sentimento de impunidade que a “lava jato” diz combater.
ConJur — O conteúdo das delações pode ser combinado antes?
Fábio Tofic —
 O acordo de colaboração é um pacto, uma troca. Os réus contam o que sabem em troca de um benefício. Tanto o benefício quanto o conteúdo da colaboração é discutido abertamente, do contrário, não seria um acordo.
ConJur — Quais são as mudanças legislativas possíveis para evitar que as prisões sejam usadas para obter acordos de delação?
Fábio Tofic —
 Prisão preventiva não poderia ser objeto de negociação. Ou existem motivos para a prisão, ou não existem. A lei não prevê a possibilidade de barganhar uma coisa pela outra. A lei prevê benefícios penais, e não processuais. Tudo que pode ser barganhado passa a ser motivo de “chantagem”. O mesmo ocorre quando se permite barganhar a delação com benefícios a familiares. Permite que a ameaça a filhos e parentes se torne instrumento de pressão contra o réu. Este ciclo não faz bem ao Direito nem à Justiça.
ConJur — Passamos há pouco tempo por operações que foram anuladas por erros da investigação, como castelo de areia e satiagraha. A “lava jato” seria impossível em outra época?
Fábio Tofic —
 Não vejo aí uma discussão de cunho temporal. As autoridades cometeram erros gravíssimos na condução daquelas operações. Tão graves que o Poder Judiciário as liquidou.
ConJur — Qual será o legado da “lava jato”?
Fábio Tofic —
 Difícil prever. Uma vez perguntaram a um líder chinês qual foi o impacto da Revolução Francesa, e ele respondeu que ainda era muito cedo para saber. Sem dúvida haverá resultados positivos. A forma como se enxerga a corrupção nunca mais será igual.
ConJur — O senhor acha quer a mudança de entendimento do STF, permitindo a prisão antes do trânsito em julgado, é um retrocesso? O senhor vê chance de essa posição ser revista em breve?
Fábio Tofic —
 Temos uma Constituição, redigida com um único propósito: ser o pilar do nosso ordenamento jurídico. A Constituição brasileira pode ser boa ou ruim, pode ser discutida, pode até ser emendada. Aliás, se eu fosse convidado a mexer na Constituição, seguramente faria vários ajustes. Mas nada disso está em discussão. Uma vez promulgada, a Constituição deve ser preservada, respeitada, seguida. E nossa Constituição não deixa dúvidas sobre esse assunto. O processo se encerra quando se encerram os recursos. Numa primeira passada de olhos, pode ficar a impressão de que o Supremo Tribunal Federal está agilizando o andamento dos processos penais. É uma leitura. A minha é um pouco diferente. O Supremo Tribunal Federal está dizendo para a sociedade que até mesmo aquilo que está escrito pode ser mudado. Quando o que não se discutia passa a ser discutido, quando tudo pode ser relativizado, surge a insegurança jurídica. Os países são estáveis não apenas quando a economia é previsível, mas quando o arcabouço legal é sólido.
ConJur — O que acha de o ex-presidente Lula ter ido à ONU para reclamar da atitude do juiz de seu caso? É significativo?
Fábio Tofic —
 Aprovemos ou não, todo investigado tem o direito de fazer o que entender que está ao seu alcance para se defender. É uma questão de princípios. O ex-presidente é investigado e, juntamente com seus advogados, viu nesse expediente um caminho que faz sentido. Não me cabe questionar.
ConJur — Para que serve o IDDD?
Fábio Tofic —
 Serve para lutar dia e noite por um direito fundamental da sociedade nas democracias, que é o direito de defesa. Serve para garantir aos presos o direito a um julgamento. Veja bem: não estou falando em julgamento justo, mas em julgamento. Boa parte dos nossos presos não foram julgados. O IDDD serve para garantir que o Estado seja obrigado a produzir condenações baseadas em provas de qualidade. Serve para assegurar a presunção de inocência. Serve para combater o uso desmedido das prisões preventivas, para defender um tratamento digno durante todas as fases do processo.
ConJur — Advogados apontam que a OAB não atua na defesa do direito de defesa. O senhor concorda? É papel do IDDD preencher esse espaço?
Fábio Tofic —
 A OAB tem um grande escopo de atribuições, entre as quais está, sim, denunciar as falhas no direito de defesa. O IDDD funciona como um reforço concentrado nesse tema. OAB e IDDD são grandes parceiros.
ConJur — Alguns setores da Justiça Federal reclamam que advogados que buscam nulidades processuais são menos preparados, ou não conseguem enfrentar o mérito. O que acha desse tipo de raciocínio? Esse tipo de defesa acabou? O processo virou apenas formalidade para se chegar a uma sentença?
Fábio Tofic —
 A priorização das nulidades em detrimento do mérito não é culpa dos advogados, mas de um sistema que não prioriza a prova no julgamento. As provas no Brasil são pífias, e isto é responsabilidade da polícia e do MP. O juiz aqui costuma se contentar com níveis baixíssimos de qualidade da prova. Até pouco tempo ninguém sabia o que era cadeia de custódia da prova. Se um advogado falar sobre isto no processo, vai ser motivo de piada. Quem abandonou o debate de mérito foi o próprio Estado, ao aceitar como provas o mesmo padrão que se usava no século XIX para condenar alguém. Restou à defesa as teses processuais. É um caminho óbvio e natural. Fruto de um faz de conta processual que o Judiciário não teve coragem de enfrentar para não entrar em confronto com a polícia e com a opinião pública.
http://www.conjur.com.br/2016-ago-09/entrevista-fabio-tofic-simantob-presidente-iddd

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Curso de tecnólogo jurídico: assumimos a rabulice de vez no ensino de Direito

OPINIÃO

1 de agosto de 2016, 8h02

Foi divulgado na ConJur (aqui), no dia 26 de julho de 2016, que o MEC impediu a abertura de um curso para a formação de tecnólogos em Serviços Judiciários solicitada por uma faculdade privada do Paraná, a fim de evitar um possível conflito profissional e confusão com o exercício da advocacia. O Conselho Federal da OAB também foi chamado a se manifestar sobre a questão, emitindo parecer contrário à proposta, porque o tal tecnólogo exerce(ria) atividades que são próprias de advogados e estagiários em direito.
Embora, de início, a notícia do trancamento gere alivio, ela é, na verdade, desesperadora. E por quê? Porque ela denuncia a que ponto chegamos quando se trata do ensino do direito no Brasil. Ou alguém vai dizer que isso nada tem a ver com o ensino jurídico? E que isso é bom para nosso Pindorama? Bom para quem? Bom para quem vende o curso. Tudo isso fica bastante claro no restante da notícia, que não somente informa a existência de dois cursos de tecnólogo em Serviços Jurídicos funcionando no Brasil — com status, portanto, de ensino superior — mas que também chama a atenção para a existência de cursos técnicos em Serviços Jurídicos espalhados por todo o país, inclusive com reconhecimento pelo MEC no catálogo nacional de cursos técnicos. Esse MEC... As montanhas nos aguardam.
Em 2014 já havia sido criticado o PL 5.749/2013[1], que objetiva alterar o Estatuto da OAB e criar, no Brasil, a figura do paralegal, uma espécie de “advogado-pigmeu” que, não tendo conseguido aprovação no Exame de Ordem, ficaria no “limbo” (escrevi sobre isso). Em vez de resolver o problema do deficiente ensino jurídico, a solução apresentada no referido projeto consiste em atacar uma das suas principais consequências: o problema de não se saber o que fazer com os milhares de bacharéis em Direito não aprovados no Exame de Ordem. Bingo. Mutatis, mutandis, usando o exemplo do futebol: é como se, em face de os chutadores de faltas estarem fazendo poucos gols, a solução fosse a extinção da barreira e a proibição de os goleiros terem mais de um metro de altura. Otimização: emprego de goleiro para pigmeus.
Sigo. A proliferação de cursos técnicos em “serviços jurídicos” e a tentativa de criar cursos de tecnólogo jurídico – repita-se, com status de curso superior – é um sintoma da crise do ensino jurídico no Brasil, que vem se tornando uma espécie de curso preparatório para o Exame de Ordem e para outros “concursos”. Dito de outro modo, na medida em que as faculdades de direito têm deixado de formar juristas, contentando-se com o ensino “manualesco”, “concurseiro” e “oabeiro”, caiu a diferença entre um técnico em serviços judiciários (com curso técnico ou superior) e um bacharel em direito que sequer consegue ser aprovado no exame de Ordem. Na verdade, do jeito que as coisas andam, não é possível duvidar que um tecnólogo judiciário com curso superior (há dois funcionando, como acima referido)” e um bacharel em direito logo, logo, sejam praticamente a mesma coisa. Aliás, não faltará quem faça uma equiparação “legal”.
A pretensão de criação de um curso de serviços jurídicos deveria causar espanto na comunidade jurídica, mas parece ser mais uma coisa que entra por um ouvido e sai pelo outro. Com tanta notícia e tantas injustiças cotidianas, nem dá tempo para reclamar...Mormente quando uma ação penal inicia e termina no mesmo dia (caso do Acre criticado em minhacoluna) ou quando um desembargador federal “perdoa” advogados por defenderem clientes (ver aqui a bela matéria feita por Marcos de Vasconcelos, da nossa ConJur). A que ponto chegamos?
De fato, o ensino está em crise. A aplicação do direito está em crise. Não conseguimos fazer cumprir minimamente as leis e os Códigos. O que vem valendo é a opinião pessoal do judiciário sobre as leis. E, atenção: um bocado de gente contribuiu para isso, incluindo professores mal preparados e o-modo-cursinho-de-ensinar (agora já existem os coachings ou CEO’s ). Ou vocês acham que juízes, promotores e outros lidadores do direito são filhos de chocadeira?  Quando maior a capacidade de decorar e repetir o óbvio ou desviar de mazelas dos elaboradores de prova, “mais apto” você é. As faculdades treinam os alunos para os quiz shows que vêm pela frente. Aliás, é assim que selecionamos os agentes públicos de carreira jurídica no Brasil. Concursos viraram quiz shows. Mas isso é apenas a ponta do iceberg....O direito é vítima de instrumentalismo no sense and unprecedented.
De minha parte, não me causa espanto em razão de que venho denunciando de há muito em meus livros e cotidianamente na coluna Senso Incomum. Devo ter escrito no mínimo umas quinze colunas sobre a crise do ensino. Ou seja, a criação de um curso tecnólogo de serviços jurídicos não seria o problema. O problema real é no que transformamos o direito... Estamos repristinando aquilo que, antigamente, se chamava de rábula. Sim: transformamos o ensino do direito em uma rabulice. E o exercício do direito... em uma humilhação, como escrevi na última coluna.
Isso tudo mostra o quanto fomos longe demais. Um curso de técnico judiciário oferece disciplinas como “Introdução ao Estudo do Direito”, “Direito Penal e Processo Penal”, “Teoria Geral do Processo”, quase que como um espelho da grade curricular dos cursos de Direito, porém de modo muito mais “simplificado” do que deve(ria) acontecer nas faculdades de Direito[2]. Mas, então, por que o sujeito não cursa a faculdade de direito? Quem ministra aula nesse tipo de curso? O ferreiro? O marceneiro? Ah, são professores...  de direito. Então, cara pálida, qual é o busílis?
O busílis é que isso tudo faz parte do imaginário pequeno-gnosiológico que tomou conta do direito de Pindorama. Um detalhe que é de fazer rir: se o curso é técnico e o lema de quem defende esse ornitorrinco jurídico é a prática (porque odeiam teoria), qual é, então, a razão de ter disciplina deIntrodução ao Estudo do Direito? Pindorama servindo de exemplo para o...quarto e quinto mundos. O prêmio (Ig)Nobel é nosso.
Não deverá causar surpresa se, em breve, alguém sugerir fechar as faculdades de Direito e substituí-las por cursos técnicos em serviços judiciários. Aliás, o réu não se ajuda muito. Há alguns anos, um presidente da Capes chegou a sugerir que se fizesse um doutorado profissional em direito e se acabasse com a pós-graduação stricto sensu acadêmica. Para ele, direito era pura técnica e instrumento. Pensando bem, a valer o que está sendo feito...não sei, não. Por isso minha insistência de que essa crise ainda pode matar o direito. Tudo isso é autofágico. Canibalismo epistêmico.
Afinal de contas, quanto mais se acreditar que o estudante de direito deve ser “treinado” para resolver as questões do Exame de Ordem e dos concursos públicos – elevando os índices de aprovação das instituições a qualquer preço – com aulas simplificadas, cantaroladas e decoradas com rimas e jargões (ouçam essa sobre o ECA – tchura, tchuru ecá), mais próximos os cursos de direito estarão de se tornar  cursos (meramente) técnicos. É incrível como disciplinas de cunho reflexivo são tratadas com menor importância e as discussões filosóficas como mera “perfumaria” ou ornamento nos cursos de Direito. A cisão metafísica entre “teoria” e “prática” fez com que a “prática” se autonomizasse ao ponto de, nesses cursos técnicos nos quais se busca preparar “profissionais” para lidar com uma prática descolada da teoria, ser oferecida no último semestre uma disciplina de “vivência jurídica”. Sim: uma disciplina chamada vivência jurídica. Só estocando comida, mesmo. Muita.
Para quem não sabe, circula uma lenda urbana de que hoje o professor bom é o “achado na rua”, isto é, aquele que sabe da prática e que desdenha qualquer “firula” ou “filigrana”. Mas, o que isto, a prática? Isto que está aí? Fujamos, pois.
Outra coisa: no imaginário que se forjou, ninguém se pergunta por que alguém cursa durante cinco anos uma faculdade de Direito e ache natural que, depois, se curse mais um ou vários anos de curso preparatório para passar num exame de ordem. Ninguém se pergunta sobre a coincidência de que os professores que lecionam na faculdade sejam (quase todos) os mesmos dos cursinhos de preparação.
Ao que tudo indica, o tecnólogo ou mesmo o curso técnico de serviços judiciários nada mais é que uma espécie de versão 2.0 do direito simplificado, mastigado, dos livros cujas capas deveriam conter uma advertência do tipo “o uso constante deste material pode fazer mal a sua saúde mental”.
Daí me pergunto – sarcasticamente : qual é a necessidade de um curso de tecnólogo de serviços jurídicos, se boa parcela dos cursos jurídicos no Brasil já se prestaria, no máximo, somente para isso ou que pela sua qualidade atingiriam apenas isso?
Seria de rir, se não fosse de chorar. Levemos a sério o Direito é o que venho dizendo de há muito. Não adianta esbravejar e blasfemar quanto a ideia de criar um curso tecnólogo de serviços jurídicos, quando quem critica (vítimas e algozes) não se digna a compreender a problemática. Ela é mais estrutural, pois!
Venho dizendo, à sociedade e à saciedade, que o direito é mais sofisticado do que isso, daí porque não podemos tratar tão mal nosso precioso objeto de trabalho. Paremos com o canibalismo jurídico. O efeito colateral temos visto diariamente nos foros, nas decisões judiciais, na advocacia, na atuação das defensorias e do ministério público. Todos de alguma maneira têm colaborado para esse caos. Não há inocentes.
Uma questão: eu queria saber quem teve essa ideia. É genial, pois não? Pindorama deve ganhar um Nobel. Vamos todos a Estocolmo. Agora vai.  Mas, só fiquei com uma pulga atrás da orelha. O MEC barrou alguns cursos. Só que, ao que li, outros estariam liberados? E será sério esse argumento de que a autonomia universitária dá poderes a que sejam criados esses tipos de cursos “técnicos”? Autonomia, agora, é soberania? Quer dizer que, pela autonomia universitária, é possível criar qualquer tipo de curso? Se, sim, por que não criar um curso para fazer jogo do bicho? Ou um curso “como ensinar direito com música funk”? Pode tudo? Eu sempre achei que existia uma Constituição e uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mas, pelo visto, vivemos em um estado de natureza. Vale tudo.
Post scriptum: quarta-feira (3/8), às 19h, estarei tomando posse como membro da Comissão OAB vai à faculdade, na sede da OAB-SP, na rua Maria Paula, 35. E farei uma conferência, na sequência, sobre exatamente essa temática: As (im)possibilidades transformadoras do ensino jurídico. Convite feito, pois.

[2] Veja aqui um bom exemplo da “grade curricular” de um desses cursos:https://www.univates.br/tecnicos/servicos-juridicos/disciplinas
 é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 1 de agosto de 2016, 8h02